Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
29 de Abril de 2003 às 16:06

Garantias, outra vez!

Foi transposta a directiva sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e garantias relativas. Ou muito nos enganamos, ou o regime legal aprovado a poucos tranquilizará.

Rui Andrade, Miranda, Correia, Amendoeira & Associados

  • ...
Em Agosto de 2002, tivemos oportunidade de escrever nestas páginas que o comércio e a indústria portugueses aguardam com expectativa e inquietude a transposição da Directiva 1999/44/CE, de 25 de Maio de 1999, sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, porquanto deparava-se-lhes a perspectiva de uma nova regulamentação do contrato de compra e venda, que transformaria inevitavelmente o comércio de bens e serviços, sem que, então, conseguissem vislumbrar a extensão e as consequências dessas alterações.

Decorridos, desde então, sete meses, eis que tal transposição se concretiza, através do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril. E, ou muito nos enganamos, ou o regime legal ora aprovado a poucos tranquilizará.

Ao legislador nacional colocavam-se duas hipóteses: ou optava por restringir o âmbito da transposição à compra e venda entre comerciantes e consumidores, tal qual previa a Directiva, e melhor fez, por exemplo, a Áustria; ou aproveitava a oportunidade gerada pela obrigação de transposição da Directiva para rever o Regime Geral do cumprimento do Contrato de Compra e Venda, consagrado, nomeadamente, nos artigos 905.º a 922.º do Código Civil, generalizando as opções conceptuais da Directiva, tal qual fez a Alemanha, e modernizando aquele tipo de contrato à luz de princípios interiorizados, por exemplo, na Lei Uniforme sobre a Compra Internacional de Mercadorias, aprovada em Haia em 1964, e já ratificada por Portugal.

O legislador nacional preferiu a primeira hipótese, ignorando a advertência que o autor material do anteprojecto expressamente fez constar do respectivo preâmbulo (e o legislador eliminou da redacção final do diploma), sobre as fraquezas de uma tal opção (vide Paulo Mota Pinto, in «Cumprimento Defeituoso do Contrato de Compra e Venda – Anteprojecto de Diploma de Transposição da Directiva 1999/44/CE para o Direito Português», IC, 2002, página 87).

Com efeito, ao lado do regime geral da compra e venda – que agora só se aplica às vendas entre particulares, às vendas realizadas por estes a comerciantes ou profissionais, e quando muito subsidiariamente aos regimes especiais – convivem agora o regime da compra e venda comercial (artigo 463.º e seguintes do Código Comercial), o regime da venda internacional de mercadorias (Lei Uniforme sobre a Compra Internacional de Mercadorias, aprovada em Haia em 1964), e o regime da compra e venda de bens de consumo entre comerciantes e consumidores (Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril), dispersando-se por vários diplomas o que deveria ser um escopo único do contrato padrão do nosso ordenamento jurídico.

Além disso, cavou-se o fosso normativo entre esses regimes, agora, pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, entre o regime geral e o regime especial da compra e venda entre comerciantes e consumidores. A este propósito refira-se que regime geral prevê um prazo de garantia dos bens de seis meses, a contar da data de entrega do bem objecto da compra, sendo o prazo de denúncia dos defeitos de 30 dias a contar do seu conhecimento. A Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (a actual Lei de Defesa do Consumidor) fez, relativamente a contratos celebrados entre comerciantes e consumidores, a ruptura inicial com o primeiro daqueles prazos, elevando-o para um ano.

Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, ampliou ainda mais o dito prazo de garantia dos bens móveis, passando-o agora para dois anos, ao mesmo tempo que conferiu ao consumidor um prazo de dois meses para denunciar ao vendedor os defeitos. Além disso, estabeleceu a favor do consumidor uma presunção geral de desconformidade do bem relativamente ao contrato de compra e venda, sempre que os defeitos que se manifestem nos seis meses a contar da entrega do bem ao consumidor, para já não falar na possibilidade conferida ao consumidor de exigir directamente ao respectivo produtor ou fabricante a reparação ou substituição de bem defeituoso.

Ora, tal discrepância de regimes não pode deixar ninguém indiferente e muito menos desatento. Imagine-se as situações, no mínimo caricatas, que resultarão do facto de um qualquer cidadão, por exemplo médico de profissão, que seja levado a adquirir simultaneamente, duas impressoras, uma para a sua casa, a outra para o seu consultório. A primeira, destinada a uso doméstico, goza de um prazo legal de garantia de dois anos, devendo o comprador denunciar os defeitos ao vendedor no prazo de dois meses. A segunda, para uso profissional, embora não seja instrumento característico da sua actividade, goza de uma garantia legal de seis meses, devendo o comprador denunciar os defeitos no prazo de um mês. Sendo que, no primeiro caso o comprador pode exigir directamente do respectivo fabricante a reparação ou substituição da impressora, mas já não no segundo caso, pelo menos ao abrigo da garantia legal.

Desde já facilmente se constata que Decreto-Lei n.º 67/2003 trouxe consigo duas realidades nada abonatórias para a segurança do comércio jurídico: a fragmentação do regime jurídico do contrato de compra e venda por regimes especiais consoante os sujeitos intervenientes, e o aumento do fosso normativo entre as regras do regime geral e as regras do regime especial da compra e venda entre comerciantes e consumidores. O futuro dirá de que forma esta duplicidade de regimes afectará as empresas, ao nível da harmonização e optimização de procedimentos e dos custos a eles associados.


Rui Andrade

Miranda, Correia, Amendoeira & Associados

Sociedade de Advogados

Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio