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Opinião
05 de Janeiro de 2007 às 13:59

Execução em diferido

Vivemos num mundo estranho e cada vez mais ameaçador. O primado da imagem tenta sobrepor-se à importância da sensatez, e aniquilar o que resta de razão.

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A feroz disputa pelas atenções nos media corresponde ao desvario da competitividade, que impele pessoas e coisas ao mais nauseabundo dos comportamentos. Que sociedade estamos a edificar? As palavras têm-nos permitido construir laços sociais, e estabelecer uma relativa superioridade sobre os outros instrumentos de mediação. Porém, pretendem fazer-nos crer que novas reivindicações nos encaminham para outros reportórios, em que as palavras já não correspondem, fundamentalmente, às exigências da época nem à identidade social do indivíduo.

As sórdidas imagens obtidas, "clandestinamente", antes, durante e depois do enforcamento de Saddam Hussein, são indícios daquilo que desejam inculcar-nos. E o regozijo repulsivo de Bush, assim como as acrobacias "humanistas" de Blair traduzem a natureza do imbróglio político-ideológico que envolveu a brutal invasão do Iraque. Mas o caos no Médio Oriente não é acontecimento novo no historial norte-americano de atrocidades, invasões, depredações, genocídios, intervenções, assassínios, e apoio a ditadores fantoches em todo o mundo. E a "justiça" iraquiana, que mandou executar Saddam, é outra expressão da política de última fronteira, cuja influência é determinante na acção diplomática dos EUA.

A CNN transmitiu, incessantemente, o filme da execução e das vozes que sublinharam o medonho acto. A política informativa daquela importantíssima rede de televisão é conhecida, e tem ocasionado a veemente crítica de sectores mais progressistas, incomodados com a unilateralidade do noticiário, e aquilo que lhe subjaz. Pior, ainda, é quando, em Portugal, assistimos ao mesmo desfile de horror, numa espécie de aparato subserviente que enche de opróbrio as televisões.

Que ganhámos, todos nós, com a projecção daqueles minutos finais de um homem perante a sua própria morte? Imediatamente a seguir deveria estabelecer-se um debate alargado, com representantes de todas  –  repito: de todas  –  as forças políticas, sociais e culturais. A persistência na tese de que somente a apresentação dos factos elimina qualquer espécie de tendência, é falaciosa. Parece, infelizmente, ser regra de um jornalismo sem pejo, cada vez mais afastado do leitor e do telespectador, e cada vez mais distante da sua particular identidade.

A execução televisionada de Saddam Hussein conduz à ambiguidade das particularizações, na tentativa de as converter em aspirações de carácter geral. Não o é. E a "democracia" iraquiana, apressadamente aplaudida pelo "socialista" Blair e pelo "neoconservador" Bush implodirá, naturalmente, não só devido à imperfeição da sua legitimidade, mas, sobretudo, pelas tensões religiosas e políticas que aumentam, dia a dia, no país e na região.

Quando o extraordinário Blair, fazendo coro com as mais cínicas declarações da Administração Bush, declara ser contra a pena de morte, mas que a "democracia" iraquiana e o seu tribunal de excepção unicamente aplicaram as leis "democráticas" do país, o despudor e a imoralidade atingiram o cume. A verdade é que a caixa de Pandora foi aberta por pequenos aprendizes de feiticeiro. Blair vai embora. Bush começou a ser corrido. Aznar, outro comparsa, e Durão Barroso, figurinha menor, figuram no rodapé desta tragédia, a qual desemboca em múltiplas incertezas.

Num mundo aparentemente "normalizado" existem forças subterrâneas preparadas para minar as bases e subverter, totalmente, essa imposição do topo. O terrorismo é uma das faces dessa relação inseparável da inquietação com o desespero. E o caos no Médio Oriente reproduz essa angústia para produzir a cólera. Não há terceira via. E os norte-americanos, quando foram vergonhosamente corridos do Iraque, deixam atrás de si um mar de sangue, acrescentando, ao rol de milhões de inimigos, outros milhões mais.

Uma vez ainda, a assim chamada Comunicação Social tripudiou sobre a sua essencial responsabilidade. A questão central consiste na "mundialização" da ideologia informativa. A obediência rasteira ao que ocorre nos Estados Unidos atinge o desprezível. Despenha-se um aeroplano no local mais recôndito do Arizona e logo as nossas zelosas televisões aplicam-nos minutos de imagens. E alguns dos grandes acontecimentos europeus são ignorados ou, apenas, levemente noticiados pela Euronews, a horas impossíveis ou impróprias.

As nossas televisões são florestas de enganos sem clareiras. E o enforcamento de Saddam Hussein foi disso exemplo dramático. A execução foi transmitida em diferido. E como está a ser a nossa?

APOSTILA –  Dilecto, vamos aos livros. Acabo de ler, com vagar e prazer activo, um extraordinário romance, "Os Anéis de Saturno", do enorme escritor que foi W.G.Sebald. A edição é da Teorema, dirigida pelo saber, pelo bom gosto e pelo talento de Carlos Veiga Ferreira. A Teorema, anteriormente, publicou, do mesmo autor, "Austerlitz", "Os Emigrantes" e "História Natural da Destruição", que constituem um panorama, por vezes aterrador, da condição humana. Sebald (1944-2001) pertence à grande tradição da cultura de língua alemã, na linha de Herman Broch, Musil, Bruno Schultz, para os quais a contingência do viver obedecia a um acto ético. Está na zona dos grandes moralistas, que elevaram a literatura europeia a um nível raro. E que se continua com escritores da estirpe de Peter Handke, Botto Strauss e Thomas Bernard.

Dilecto: Bom ano, boa sorte, boas leituras.

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