Opinião
Esquerda de direita
É certo que o texto da Constituição europeia é medíocre. Excessivo no palavreado, restritivo no modelo económico, parco no mais importante, ou seja, na cidadania europeia.
É certo que uma outra Europa é possível e que frequentemente só com choques e rupturas se consegue evoluir.
É certo que existe um enorme fosso entre os burocratas de Bruxelas e a vasta maioria dos cidadãos.
Se a isto juntarmos o facto de qualquer acto democrático, eleição ou referendo, ser invariavelmente contaminado por outras questões, de natureza partidária, governamental, mediática, etc., temos então o caldo político que levou ao «não» francês.
Isto é tudo muito certo mas não é essencial. É preciso procurar mais fundo.
As pessoas (no Ocidente) estão confusas e amedrontadas. Confusas porque o mundo está a mudar a uma velocidade superior à sua capacidade de apreensão. Assustadas porque temem pelo seu modo de vida e dos seus.
Na verdade, as notícias que nos chegam do presente são quase todas más. Crise na economia, guerras, insegurança generalizada. Tem-se medo do terrorismo, do crime, mas também do que se come, do ozono, das doenças, da destruição ambiental. Com os «media» a dar todo o destaque às más notícias e quase nenhum às boas, cria-se um ambiente de grande instabilidade existencial. O presente é perigoso. Mas do futuro não se espera melhor. A economia vê-se infestada de novos perigos, o chinês, o do petróleo, o da implosão do sistema produtivo. A vida humana, tal como a conhecemos, é ameaçada por máquinas inteligentes, manipulações genéticas, guerra bacteriológica, clonagem e por aí fora. O futuro é um pesadelo.
Por isso tanta gente se vira para o passado, para o adquirido e seguro, os factores identitários, as velhas nações, as tradições, a religião. Ora tudo isto seria muito compreensível se não afectasse também aquele sector da sociedade que sempre se manifestou como força evolutiva, inovadora e modernizadora e sempre assentou a sua acção na racionalidade e no conhecimento. Ou seja, aquilo a que nos habituámos a chamar a esquerda.
Mas basta ouvir os discursos e observar as posições para se perceber que uma boa parte da esquerda é hoje extremamente conservadora e até retrógrada. Na defesa do tradicional contra o moderno, na exacerbada valorização das identidades contra o cosmopolitismo, na rejeição das tecnologias, do conhecimento e da inovação. Muito daquilo que se auto proclama de esquerda é na verdade uma nova direita.
Neste contexto, a questão europeia tem sido bem elucidativa. Parte da esquerda tem confundido o essencial com o acessório. Exigem para a Europa aquilo que não vislumbram para os seus próprios países. Preferem a soberania nacional a uma sinergia europeia e supranacional. Reduzem a questão social ao emprego, não compreendendo que o social se joga hoje à escala global e não já na velha luta entre patrões e empregados de um determinado sector, de uma determinada região, de um determinado país. A Europa, mesmo uma Europa politicamente medíocre, representa um enorme avanço social e civilizacional. Porque precisamente supera os contextos locais, sectoriais, regionais e nacionais, que são sempre desfavoráveis para o comum do cidadão.
Houve um tempo em que a esquerda era cosmopolita e desejava acabar com as fronteiras, as nacionalidades, as identidades opressivas. Houve um tempo em que se lutou pelo universalismo, pelo direito à livre circulação, pela língua comum (o esperanto por exemplo), por uma cultura avançada por oposição às velhas tradições obsoletas.
Hoje, parte da esquerda regressa ao passado. Acicata os portugueses contra os estrangeiros. Exige bloqueios à circulação de produtos e pessoas, reeditando o orgulhosamente sós de tão má memória e pior consequência. Esta esquerda é de uma direita tão arcaica que já só encontra equivalente nos Le Pen, nos Pereiras, nos Monteiros. Isto mesmo bastaria para lhes dar que pensar. Mas eles já não pensam, já só resmungam como os velhos reaccionários.