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Esquerda com véu

Uma mulher toda tapada de preto e só com uma fina nesga aberta por altura dos olhos lançou recentemente nova acha para a fogueira do choque de civilizações.

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Foi em Inglaterra e a senhora, professora de profissão, reclamou o seu direito a dar aulas naqueles preparos. Nada que admire portanto, pois por estes dias tudo parece servir para inflamar ânimos e abrir telejornais. O que admira sim, e muito, é que no Ocidente e em particular nalguma esquerda, ainda para mais dita radical, se tenha tomado o partido da dita senhora. Por cá foi o Bloco de Esquerda.

Segundo percebi, e não é fácil, a justificação para tão estranho apoio assenta essencialmente em dois argumentos. O direito à identidade religiosa e o erro que será promover a confrontação entre culturas tão distintas. Escreve Miguel Portas que no Reino Unido está em curso uma campanha "para impedir as minorias religiosas" de usarem "os sinais distintivos das suas confissões". E mais adiante que "transformado em objecto de polémica, o véu vira símbolo de identidade e resistência. E a sociedade perde em direito de escolha".

Admirável. Pois sempre pensei que a esquerda se batia pelo laicismo e por afastar o mais possível da vida pública os sinais distintivos das diversas confissões. Aliás, que me lembre, o Bloco várias vezes se manifestou, e muito bem, contra a exibição de crucifixos nas nossas escolas, tendo mesmo feito disso assunto maior para a sua sempre muito agitada acção política. Não percebo portanto qual a diferença entre um crucifixo católico ou um véu islâmico já que este se reclama precisamente, não da moda, mas da religião. Afinal estamos perante um similar direito de escolha mas que põe em causa o princípio geral do laicismo. Que o Miguel Portas, e o Bloco, estejam preocupados em proteger a religião contra o secularismo é algo que sinceramente me espanta. Eu pensava que a sua missão política era precisamente o contrário.

Não deixa também de ser no mínimo curioso ver o Miguel Portas a apelar ao bom senso, ao diálogo e ao apaziguamento quando noutras matérias, diria mesmo na maioria delas, é precisamente através do apelo ao confronto social que o Bloco pretende realizar as mudanças que julga necessárias. Não se compreende portanto tanta tolerância nuns casos para tanta intolerância noutros. Definitivamente há aqui qualquer coisa que não bate nada certo.

Dito isto e para simples benefício da reflexão, já que a verdade absoluta deixo para outros, parece-me que esta esquerda alimenta dois enormes equívocos. O primeiro é o do valor absoluto da identidade como forma de combater a globalização. O segundo é o clássico fascínio pelo inimigo do meu inimigo.

Não há hoje palavra que mais agrade à esquerda. A identidade que sempre significou o mundo concentracionário contra o qual gerações de pensadores livres, populações e jovens sempre se bateram, tornou-se nas últimas décadas uma coisa excelente e a defender a todo o custo. Mesmo que se trate da identidade mais bárbara e retrógrada, como por exemplo é o caso da das nacionalidades, do provincianismo, das tradições obsoletas, das crenças ou da chã barbárie. É por isso que o Bloco apoia as matanças de Barrancos, o discurso do campo contra a cidade, a cruzada de Olivença, as feiras de chouriço e, hélas, os véus das muçulmanas. Mas já que falamos de identidade o que resta então das próprias raízes históricas da esquerda, nas suas lutas contra o obscurantismo e consequente impulso de modernidade, secularismo e universalismo? Ver o Miguel Portas, filho das Luzes, da Revolução Francesa, da Comuna de Paris, do Maio de 68 e do feminismo, ao que presumo, defender o direito ao véu é mais do que triste, é simplesmente patético.

Mas a coisa só piora. É compreensível que aqueles que não apreciam a política bélica de Bush, e do Ocidente em geral diga-se de passagem, possam tirar algum consolo do facto da vida lhes correr tão mal no Iraque, e noutros sítios atribulados. Mas uma coisa é apreciar as dificuldades de uma política que se considera errada e outra é confundir os inimigos de Bush e do Ocidente com os nossos amigos. Estamos a falar do mais bárbaro que existe no tempo presente. De gente que pugna por regimes ditatoriais, sanguinários, religiosos, de opressão de tudo e todos, a começar pelas mulheres, e que a terem sucesso no mundo fariam regredir toda a civilização para os tempos da Idade Média. Está claro como água límpida que a vitória desta gente seria, antes de mais, a nossa própria derrota e a de toda uma história de lutas pela liberdade, pela cidadania, pela democracia, pela modernidade, pela ciência, pela cultura, enfim pelo humano como plena realização de si mesmo.

Esta tolerância, e clara simpatia, manifestada por Portas e outros esquerdistas para com os radicais islâmicos retira toda a credibilidade ao seu próprio projecto de emancipação social. Como acreditar, por exemplo, que desejam libertar a mulher da injusta lei do aborto imposta pelo fundamentalismo católico, quando ao mesmo tempo apoiam a expressão de uma condição feminina degradante que o véu confessional tão claramente exprime?

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