Opinião
Da vida das marionetas
Durante anos a fio o cidadão foi compelido a consumir, consumir, consumir.
Durante anos a fio o cidadão foi compelido a consumir, consumir, consumir. Montaram-se ideologias, linhas de crédito e grandes centros comerciais para o efeito. De súbito, consumir é um crime.
A Europa do início do século XX era ainda um vasto campo de miséria e opressão. Elites bárbaras e corruptas, povo embrutecido e faminto. Van Gogh, que começou como padre, depois foi pintor e acabou louco, retratou numa das suas melhores e mais originais obras, "Os comedores de batatas", esses tempos sombrios. Uma família holandesa reúne-se à volta de uma mesa para comer a única refeição do dia, feita de batatas cozidas e uma zurrapa parecida com café. O ambiente é obscuro e lúgubre. Os rostos feios e brutos. Não será aliás por acaso que a Holanda praticamente não tenha uma gastronomia própria. Enquanto o povo mastigava rijas batatas, nos palácios falava-se e comia-se francês. Mas adiante.
Com a derrota de Hitler, parte da Europa descobre duas novidades: a liberdade e a riqueza. O povo emerge então como entidade física e ideológica, com os seus direitos e poderes específicos, nomeadamente os de eleição democrática. O povo, que sempre fora encarado pelas elites como mera fonte da exploração bruta, aparece agora também como consumidor.
Fomes milenares, misérias profundas, barbáries tremendas, levam a generalidade das pessoas a agarrar freneticamente esta janela de oportunidade, paz e prosperidade. Os pequenos delírios fetichistas, a febre da elevação social, a reificação dos momentos de vida, a mercantilização de tudo e de nada, tornam-se então banalidades de base de uma vida coletiva que depressa tomou o nome de Sociedade do Consumo.
Por cá, a ação combinada da Igreja e do salazarismo, prolongaram a miséria por mais três décadas. Só em 74 conquistámos liberdade e acesso aos bens de consumo. A fome era portanto ainda maior e os portugueses, finalmente europeus, mergulharam totalmente na vida moderna do Jacques Tati. Ninguém pode contestar a legitimidade do facto. Todos deviam ter direito aos seus 15 minutos de alucinação coletiva.
Tanto mais que os poderes, políticos e económicos, empreenderam desde então uma obstinada campanha para o consumo. A publicidade, toda ela enganosa já que sobrevaloriza a qualidade dos produtos mas esconde os seus defeitos e inutilidade prática, passou a bombardear o comum do cidadão com apelos à aquisição de tudo. Objetos, instantes, sorrisos, experiências, corpos e futuros. Tudo se tornou num produto. A comida, a praia, o amor, a viagem, o livro, a arte. Os bancos abriram o crédito praticamente ilimitado. O dinheiro transformou-se em plástico adiado. A arquitetura construiu as grandes catedrais do nosso tempo sob a forma de enormes centros do comércio e do sonho.
Eis senão quando, de tanto emprestar o que não tinha, o sistema entra em colapso. A finança, que vive agora da compra e venda do próprio dinheiro e nada de palpável produz, afoga-se na demência das operações especulativas, dos ativos tóxicos e de tantas outras manigâncias, legais e ilegais, cujo único objetivo é o lucro grande e rápido. A narrativa muda. O consumo torna-se num ato irresponsável e quase criminoso. O cidadão é agora fortemente pressionado a não comprar nada, não viajar, não se divertir, não ir jantar fora, enfim, se possível a ficar em casa sentadinho a ver a televisão e as más notícias.
Não é preciso um grande esforço intelectual para perceber a incongruência do mecanismo. Sem consumo a Sociedade do Consumo deixa de funcionar e nada, mesmo nada, existe como efetiva alternativa. Não estamos perante a emergência de uma súbita consciência coletiva que tenha percebido a inocuidade de uma sociedade assente na posse do fugaz. Nem das suas consequências nefastas, já não digo para a trivialização das vidas, mas por exemplo para o desgaste irreversível do meio ambiente. Não é que estejamos a desvalorizar o consumo para empreender decididamente uma Sociedade do Conhecimento, única que poderá realmente fornecer um destino digno e empolgante à espécie humana.
Trata-se simplesmente de mais um expediente airoso mas irrefletido das elites que metidas num sarilho não sabem como sair dele. O povo que se lixe, como sempre. Comam batatas.
A Europa do início do século XX era ainda um vasto campo de miséria e opressão. Elites bárbaras e corruptas, povo embrutecido e faminto. Van Gogh, que começou como padre, depois foi pintor e acabou louco, retratou numa das suas melhores e mais originais obras, "Os comedores de batatas", esses tempos sombrios. Uma família holandesa reúne-se à volta de uma mesa para comer a única refeição do dia, feita de batatas cozidas e uma zurrapa parecida com café. O ambiente é obscuro e lúgubre. Os rostos feios e brutos. Não será aliás por acaso que a Holanda praticamente não tenha uma gastronomia própria. Enquanto o povo mastigava rijas batatas, nos palácios falava-se e comia-se francês. Mas adiante.
Fomes milenares, misérias profundas, barbáries tremendas, levam a generalidade das pessoas a agarrar freneticamente esta janela de oportunidade, paz e prosperidade. Os pequenos delírios fetichistas, a febre da elevação social, a reificação dos momentos de vida, a mercantilização de tudo e de nada, tornam-se então banalidades de base de uma vida coletiva que depressa tomou o nome de Sociedade do Consumo.
Por cá, a ação combinada da Igreja e do salazarismo, prolongaram a miséria por mais três décadas. Só em 74 conquistámos liberdade e acesso aos bens de consumo. A fome era portanto ainda maior e os portugueses, finalmente europeus, mergulharam totalmente na vida moderna do Jacques Tati. Ninguém pode contestar a legitimidade do facto. Todos deviam ter direito aos seus 15 minutos de alucinação coletiva.
Tanto mais que os poderes, políticos e económicos, empreenderam desde então uma obstinada campanha para o consumo. A publicidade, toda ela enganosa já que sobrevaloriza a qualidade dos produtos mas esconde os seus defeitos e inutilidade prática, passou a bombardear o comum do cidadão com apelos à aquisição de tudo. Objetos, instantes, sorrisos, experiências, corpos e futuros. Tudo se tornou num produto. A comida, a praia, o amor, a viagem, o livro, a arte. Os bancos abriram o crédito praticamente ilimitado. O dinheiro transformou-se em plástico adiado. A arquitetura construiu as grandes catedrais do nosso tempo sob a forma de enormes centros do comércio e do sonho.
Eis senão quando, de tanto emprestar o que não tinha, o sistema entra em colapso. A finança, que vive agora da compra e venda do próprio dinheiro e nada de palpável produz, afoga-se na demência das operações especulativas, dos ativos tóxicos e de tantas outras manigâncias, legais e ilegais, cujo único objetivo é o lucro grande e rápido. A narrativa muda. O consumo torna-se num ato irresponsável e quase criminoso. O cidadão é agora fortemente pressionado a não comprar nada, não viajar, não se divertir, não ir jantar fora, enfim, se possível a ficar em casa sentadinho a ver a televisão e as más notícias.
Não é preciso um grande esforço intelectual para perceber a incongruência do mecanismo. Sem consumo a Sociedade do Consumo deixa de funcionar e nada, mesmo nada, existe como efetiva alternativa. Não estamos perante a emergência de uma súbita consciência coletiva que tenha percebido a inocuidade de uma sociedade assente na posse do fugaz. Nem das suas consequências nefastas, já não digo para a trivialização das vidas, mas por exemplo para o desgaste irreversível do meio ambiente. Não é que estejamos a desvalorizar o consumo para empreender decididamente uma Sociedade do Conhecimento, única que poderá realmente fornecer um destino digno e empolgante à espécie humana.
Trata-se simplesmente de mais um expediente airoso mas irrefletido das elites que metidas num sarilho não sabem como sair dele. O povo que se lixe, como sempre. Comam batatas.
Este artigo de opinião foi escrito em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.
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