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Um aldrabão fez furor esta semana ao dizer algumas trivialidades na BBC.

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Um aldrabão fez furor esta semana ao dizer algumas trivialidades na BBC. Apresentando-se como corretor, que não é, e grande investidor, com cerca de mil libras na conta, afirmou perante as câmaras de televisão basicamente duas coisas. Os investidores não se comovem minimamente com os dramas sociais que provocam, pois só lhes interessa conseguir o maior lucro possível; não são os governos que mandam no mundo mas a Goldman Sachs (um dos maiores bancos de investimentos do planeta, para quem não sabe).

Estas declarações foram de imediato reproduzidas através dos mais variados meios por toda a parte. As reações não se fizeram esperar. Fizeram-se debates, consumiu-se tempo de antena, encheram-se blogues e facebooks. Economistas, políticos e avulsos manifestaram a sua indignação. A polícia suspeitou que o homem pudesse ser um terrorista.

E, no entanto, estamos perante puras banalidades. Toda a gente sabe que a especulação financeira não visa o bem-estar geral, mas o lucro avultado e rápido; toda a gente sabe que é o poder financeiro que manda e não o poder político, cada vez mais debilitado e serviçal.
Não são portanto as declarações do "wannabe" corretor que espantam nesta história, mas a fingida repulsa geral.

No livro "A Sociedade do Espetáculo", Guy Debord tem uma frase que se aplica bem à situação. "Num mundo realmente invertido, a verdade é um momento do falso". A norma já não é a verdade mas a mentira, só que esta, por vezes, no meio de tanta tramoia acaba por revelar alguma verdade oculta. O aldrabão londrino não é investidor, mas pensa como eles. Na sua ânsia de aparecer nas pantalhas disse simplesmente o que toda a gente sabe mas finge desconhecer.

São várias as razões que conduzem a esta realidade dominada pela mentira generalizada. Do comportamento individual à comunicação das empresas interessa sobretudo valorizar o melhor e esconder o pior. Para casar ou para vender são as qualidades que se enaltecem e nunca os defeitos. Trivial.

Mas da pequena dissimulação, que promove o convívio e o comércio, depressa se passou para a impostura pensada, premeditada, elaborada por especialistas. Não falo só dos publicitários, profissionais do embuste, mas igualmente dos jornalistas, políticos, empresários, investidores e em geral todos aqueles que vivem de alguma atividade pública. A nossa sociedade está repleta de assessores, consultores de comunicação, psicólogos, relações públicas que procuram condicionar desejos, manipular informação, dissimular verdades. A contrainformação faz hoje o essencial da informação. As notícias transformaram-se em campanhas. A realidade é cada vez mais uma fabricação meticulosa e técnica.

E depois é só navegar no dia-a-dia. Atores que nunca param de representar, dentro e fora da tela; famosos sempre glamorosos mas que na realidade são poços de sordidez; políticos que prometem em campanha o que sabem não poder cumprir; empresas que anunciam lucros para subir o valor das ações em bolsa; fabricantes que omitem a nocividade dos seus produtos. E claro encartados burlões, trapaceiros, vendedores de toda a espécie de banha da cobra. A mentira é hoje uma profissão, reverenciada e lucrativa. Há mesmo cursos académicos para o efeito.

Que isto assim seja não admira. Vivemos numa sociedade que sobrevaloriza a forma em detrimento do conteúdo, a aparência em vez da substância. O que realmente espanta é como a maioria das pessoas acredita em tudo e volta a acreditar, nessa clara incapacidade de memorizar e aprender com tantos e sucessivos enganos. Daí que tenhamos o pendular movimento das escolhas partidárias, imaginando que desta vez será diferente. Se explique como é possível ser de novo ministro alguém que disse aos portugueses ter visto as provas das armas de destruição massiva de Saddam, provas essas que nunca existiram. Como Alberto João Jardim, mentiroso confesso, ganhe eleições. Se desculpe a Isaltino Morais os seus pecadilhos.

Os portugueses são grandes crentes. Agora até acreditam que a receita da troika vai resolver os nossos problemas de uma vez por todas.


Este artigo de opinião foi escrito em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.
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