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Contra-Regulação

O que o Governo pretende, com toda a clareza, é a instrumentalização política, pura e dura, da actividade regulatória.

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A independência das autoridades reguladoras em Portugal poderá ter os dias contados. Se o Governo persistir no seu projecto de Lei Quadro das Entidades Reguladoras Independentes (ERI), pouco restará de um dos mais interessantes edifícios administrativos criados após o 25 de Abril. O novo dispositivo legal é aterrador, embora se lhe reconheça a marca de frontalidade da ministra da Reforma do Estado. De facto, não ficam quaisquer dúvidas sobre as suas intenções nem sobre os seus mecanismos. O que o Governo pretende, com toda a clareza, é a instrumentalização política, pura e dura, da actividade regulatória.

Quando, em Outubro de 2002, me referi a este assunto num artigo intitulado «O Império contra-ataca», publicado neste jornal (então semanário), mal imaginava que, menos de dois anos volvidos, brotaria da cabeça dos actuais governantes um tal atentado às regras e às práticas comunitárias no tocante ao funcionamento das entidades reguladoras.

Os autores do projecto-assassino revelam, aliás, um preocupante desconhecimento sobre esta matéria, ao ponto de o seu âmbito de aplicação (artigo primeiro) ser definido do seguinte modo: «Podem assumir a natureza de entidades administrativas independentes os institutos públicos que tenham como atribuição a regulação das condições do mercado de uma actividade em que o próprio Estado concorra, directa ou indirectamente, com entidades privadas, sempre que o interesse público envolvido na regulação imponha que a entidade reguladora não fique sujeita a superintendência do Governo no exercício dessa actividade». Duvido que alguém consiga discorrer, a partir de uma tal confusão de conceitos, quais os sectores e as entidades que são objecto do diploma. Senhores legisladores: a regulação, enquanto instrumento público de correcção de anomalias de mercado em certos sectores de actividade, é indiferente à natureza dos capitais sociais das empresas; haja ou não interesses accionistas do Estado, os sectores da energia, comunicações, águas, transportes, banca ou seguros, deverão estar sujeitos a regulação. Em que fonte da teoria económica ou mesmo do direito se foram os senhores inspirar? E quais são as «categorias» de interesse público que justificam a «sujeição [das ERI] à superintendência do Governo»? E que bons motivos explicam o regresso à condição de comuns institutos públicos, algo que todas as práticas internacionais contrariam?

Mas o pior ainda está para vir. As normas relativas à independência (artigo 3º), tutela (artigo 6º) e cessação de mandato (artigo 12º) são autênticos tiros de zagalote na independência das ERI. Se o projecto for avante, terão de passar a «observar os princípios orientadores das políticas sectoriais fixadas pelo Governo» e a estar sujeitos à sua fiscalização. Se não o fizerem, ou, presume-se, se interpretarem indevidamente os «princípios orientadores», ficam sujeitos a inquéritos, sindicâncias e processos disciplinares ordenados pela tutela. Do mesmo modo, os conselhos directivos (um termo certamente desenterrado das profundezas da Praça do Comércio) das ERI terão de se habituar a receber «advertências formais e escritas» sempre que desrespeitarem os tais «princípios orientadores», podendo mesmo vir a ser destituídos se reincidirem no «desrespeito». Para rematar, a própria intendência das ERI perde toda a sua autonomia. Do plano de actividades ao orçamento, da gestão de recursos humanos às normas contabilísticas, nada escapará ao controlo governamental.

Não, caro leitor, não é o script de uma ficção arrepiante. É a realidade da Reforma do Estado na versão drª Manuela Ferreira Leite. Talvez a senhora ministra tenha simplesmente confiado nos seus juristas e nos seus serviços, talvez a mão controleira da Horta Seca a tenha desviado de propósitos mais elevados, talvez a iminência de uma nova autoridade reguladora para a comunicação social tenha despertado velhas tentações. Talvez sim. Quando o diploma vir a luz do dia, ficaremos a conhecer melhor os seus mandantes e as suas intenções.

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