Opinião
Como vencer a globalização
Um dia chegou a globalização, sob a forma de um dos maiores símbolos do progresso e do desenvolvimento, vulgo auto-estrada, e Canal Caveira foi praticamente riscada do mapa.
Por volta dos anos 60 os lisboetas tomaram o gosto de ir para o Algarve onde para além domar límpido, do cheiro a flores de amendoeira, dos figos, do Cliff Richards e do peixe realmente fresco, ninguém sabia o que era o turismo. Ir à praia tornara-se então sinal de modernidade, tal como no início do século sucedera com as montanhas e as grandes caminhadas. Os poucos que tinham carro metiam-se então à estrada, numa aventura que durava um dia inteiro. Quis a geografia que uma pequena povoação mineira, de seu nome peculiar Canal Caveira, ficasse mais ou menos no ponto em que se faziam horas de almoçar. Para os portugueses, de quem um amigo arqueólogo diz terem uma fome de milénios, o meio caminho acha-se idealmente entre três refeições. Assim partia-se de Lisboa logo a seguir ao pequeno-almoço, parava-se em Canal Caveira para almoçar e chegava-se ao Algarve mesmo a tempo de jantar. Ainda me lembro dessas verdadeiras expedições familiares da minha adolescência, em que para além de remendar furos nos pneus, se passava o tempo a comer.
Com os anos, apesar do melhoramento da estrada e da velocidade dos automóveis, o apelo do cozido à portuguesa e a falta de bom senso dos nossos condutores sempre dados a excessos, de velocidade, de comida e de álcool, lá foram arranjando maneira de fazer coincidir a viagem com o repasto. A pequena aldeia tornou-se no lugar alentejano com mais restaurantes por metro quadrado.
Mas eis que um dia chega a globalização, sob a forma de um dos maiores símbolos do progresso e do desenvolvimento, vulgo auto-estrada. Canal Caveira foi praticamente riscada do mapa. Muitos restaurantes fecharam, os habitantes partiram e alguns resistentes ficaram entre ameaças de deitar pedras para a via rápida e continuar a servir o cozido. Hoje é possível tomar o pequeno-almoço em Lisboa, ir a qualquer praia do Barlavento ou do Sotavento e almoçar calmamente tudo ainda da parte da manhã.
Dir-se-ia portanto que a história acabou aqui e mal. Mas não.
Depois de terem experimentado a vertiginosa ligação Lisboa / Albufeira em duas horas e meia, alguns portugueses começaram a sentir saudades do cozido. Sem ele a viagem perdia atractivos e as próprias férias cada vez mais rotineiras tornavam-se menos excitantes. Tanto mais que os engarrafamentos na 125, o caos urbanístico e a dourada de viveiro, foram tornando o Algarve cada vez mais similar ao espaço suburbano, origem da maioria dos veraneantes. Lentamente o ritual foi regressando. Hoje são muitos os que organizam a viagem de forma a chegar a tempo, não ao Algarve, mas a Canal Caveira. O sítio renasceu. O cozido venceu a globalização.
Embora possa não parecer trata- se de uma história muito séria. Que contraria o discurso corrente sobre a globalização. A direita tende a tratar a globalização como uma fatalidade à qual é preciso ceder; a esquerda prefere naturalmente resistir. Uns e outros encaram a globalização como um movimento de cima para baixo, do grande para o pequeno, do global para o local. Raramente alguém fala de globalização partindo do local para o global.
Teoricamente todos conhecem o famoso «efeito borboleta» em que o bater de asas deste minúsculo insecto pode, em determinadas circunstâncias, vir a desencadear uma enorme tempestade do outro lado do globo. Trata-se de uma imagem bastante fantasiada nascida da teoria do caos. Mas que ilustra bem a importância determinante do pequeno e do local na emergência do Todo.
Mais do que ceder ou resistir seria pois útil, para um pequeno país como Portugal, pensar o que podemos nós oferecer, inventar ou empreender que possa ter algum efeito sobre o global. Mais do que tentar competir com os chineses ou defender a todo o custo tradições obsoletas, seria importante criar algo de singular que levasse o mundo a querer ver, desfrutar ou adquirir. O caminho da cedência ou da resistência não nos levará a nenhuma parte. É bem mais estimulante para um pequeno país ou uma comunidade o desafio de querer vencer a globalização. Portugal tem que inventar um cozido.