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20 de Agosto de 2017 às 20:16

Bolsa: os filhos e os enganados

Nesta profissão que fazemos é-nos dado a conhecer informação sobre movimentos empresariais com reflexos óbvios no mercado de capitais. Qualquer vantagem competitiva dá imenso jeito no momento de decidir avançar ou recuar.

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Muito antes da Grande Recessão, os jornais económicos portugueses  debateram internamente uma questão relevante para o seu modo de vida: poderiam os seus jornalistas comprar acções ou fundos compostos por acções nacionais - ou estrangeiras, embora com ligações à pátria --, visto terem acesso a alguma informação privilegiada capaz de lhes dar avanço considerável sobre os outros investidores? A resposta apresentou-se a todos evidente: não poderiam em caso algum fazê-lo, deveriam abster-se de intervir no mercado, direta ou indiretamente, por exemplo através da mulher ou do marido ou até de um primo afortunado com liquidez e súbito espírito investidor.

Nesta profissão que fazemos é-nos dado a conhecer informação sobre movimentos empresariais com reflexos óbvios no mercado de capitais. Fusões amigáveis ou intenções de casamento, operações hostis, além dos já habituais processos e investigações judiciais, pequenas ou grandes alterações legislativas que mudam o statu quo de uma empresa e do seu negócio da noite para o dia. Até numa bolsa moribunda, como é o caso da portuguesa há já dez anos, recheada de ativos desvalorizados, é possível ganhar dinheiro comprando e vendendo "penny stocks". Qualquer vantagem competitiva dá imenso jeito no momento de decidir avançar ou recuar.

Esta discussão interna, de alguma forma também estimulada pela CMVM, então chefiada por Carlos Tavares, resultou em orientações internas, nos jornais, desprovidas de ambiguidade: quem tivesse ações teria de ver-se livre delas e quem não as tivesse em carteira não valia a pena seguir esse caminho que conduziria ao respetivo afastamento do jornal.

Na mesma altura, a CMVM fez outro esforço: pediu que as análises (research) produzidas por bancos, corretoras e etc., não fossem despejadas acriticamente nos jornais e sites, como o eram até essa altura, devendo sempre explicitar algum tipo de aviso sobre a necessidade de ler as sugestões como uma pitada de sal ou até muito cuidado, mais ou menos como avisos que constam das bulas que acompanham os remédios. Isto, apesar de os bancos jurarem a pés juntos que a existência interna de "chinese walls" entre quem vende produtos financeiros e os analisa (e recomenda) é suficientemente robusta para travar o indomável intuito comercial de um banco. Está bem abelha. O Negócios foi o primeiro a aceitar a sugestão da CMVM, como podemos ler todos os dias no site deste jornal.

E chegamos então ao que aconteceu esta semana. Rui Carvalho, director do Banco de Portugal - em tempos recentes candidato a administrador... --, foi demitido ao conhecer-se que o Ministério Público está a investigar a venda de um lote de ações do BES dois dias antes da resolução do banco, em agosto de 2014. O mais espantoso desta notícia avançada pelo Negócios não é a possibilidade de haver uma toupeira manhosa dentro do BdP: a honestidade é um bem escasso.

O que surpreende é que, à data do possível crime, o Banco de Portugal não tinha indicações internas (hoje já as tem) quanto à compra e venda de produtos financeiros pelos seus funcionários com acesso a informação delicada. Como é possível tamanho desmazelo no principal regulador financeiro do país?

A história não acaba aqui. Como reconheceu Carlos Tavares no Parlamento, em 17 de novembro de 2014, muita gente safou-se in extremis da queda do BES dias antes do banco ser terminado, despejando repentinamente todas as ações no mercado. Os menos informados não tiveram esta sorte com as ações ou com os demais produtos financeiros que tinham em mãos e que acabaram por derreter.

Mas apesar deste contraste absurdo, apesar da forma amadora como a resolução do BES passou pelo Conselho de Ministros de então sem que as ações fossem logo suspensas - só o foram um dia depois, sendo que a informação já circulava há pelo menos 3 dias em determinados círculos do governo, até hoje este escândalo é como se nunca tivesse acontecido. Caiu no esquecimento. E depois ainda querem que os investidores (não profissionais) voltem a um mercado de capitais manifestamente tão pouco transparente.

P.S. Angola vai mudar de presidente e o FMI parece ser uma solução para viabilizar o país. E que tal um RERT, o repatriamento de capitais desviados para o estrangeiro, sem o risco de persecução penal? Não era mal visto, apesar dos riscos morais e etc.

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