Opinião
Benefícios fiscais: um debate inquinado à partida
Não questiono a necessidade de monitorização e avaliação dos benefícios fiscais em rigor. É o dinheiro de todos que está em jogo.
A política fiscal é dos poucos instrumentos de política económica e social verdadeiramente estruturais e de impacto orçamental imediato. Se a primeira função dos impostos é obter receita, o mesmo não deixa de cumprir importantes funções extrafiscais, como o fomento da atividade económica, a captação de investimento ou o esbatimento de desigualdades sociais. O tema da despesa pública associada à concessão de benefícios fiscais é terreno fértil para o combate político. Pior que tudo, é terreno fértil para a contaminação da opinião pública, assim se justificando opções políticas muitas das vezes discutíveis. O debate sobre a reforma e monitorização dos benefícios fiscais não fugirá à regra.
Comecemos por um número impressivo, 11,7 mil milhões de despesa fiscal. Corresponde a cerca de 6% do PIB. Colocada a questão nestes termos, difícil será não concluir que temos despesa fiscal a mais que poderia ser distribuída em salários ou pensões. O que tem sido omitido à opinião pública é que deste montante, 7,5 mil milhões dizem respeito às taxas reduzidas de IVA - maioritariamente ditadas por razões sociais. E já agora que Portugal tem das taxas de IVA mais elevadas da União. Assim, já só sobram 4 mil milhões. É dinheiro. Contudo, e como reconhece o grupo de trabalho responsável pelo estudo ora publicado, a dita despesa fiscal é calculada com base num modelo estático, ou seja, apura-se o valor de receita que seria obtido se o benefício fiscal não existisse. Os efeitos multiplicadores sobre a economia ou os comportamentos induzidos nos agentes económicos não são avaliados, dada a complexidade do seu apuramento. São, portanto, 4 mil milhões de receita virtual. Mas caros leitores, se o legislador, ao invés de criar um benefício fiscal, decidir retirar um determinado facto tributário da respetiva norma de incidência - retirando-a do campo de aplicação do imposto - já não temos tecnicamente um desagravamento fiscal (veja-se o exemplo da anterior não incidência de IRS sobre as mais-valias de ações). A exceção vira regime regra e não há desagravamento. Confuso, não é?
Olhemos, agora, por exemplo para um benefício fiscal que tem sido objeto de muita discussão pública e cuja reforma já está anunciada, o regime de residente não habitual. Sabe-se, agora que existem cerca de 30.000 beneficiários, dos quais 2.200 estão registados como de elevado valor acrescentado. E sabe-se que esses mesmos 30.000 beneficiários pagaram 80 milhões de euros de IRS em 2017. A suposta despesa fiscal é de 593 milhões de euros. Contudo, o mesmo grupo de trabalho admite que sem esses mesmos benefícios grande parte dos beneficiários não seriam residentes em Portugal. Logo a despesa é mesmo virtual. E que falta apurar a receta adicional obtida - impostos diretos e indiretos - bem como os efeitos multiplicadores no consumo, emprego e VAR. O regime vai ser alterado sem que se tenha uma ideia real do impacto económico da medida desde a sua entrada em vigor em 2009. Aliás, apenas com a obrigação de identificação do beneficiário efetivo é que se poderá ter uma ideia do número de empresas e investimentos realizados através de Portugal por esses mesmos beneficiários. O regime de RNH - que genericamente prevê uma tributação de 20% para determinadas atividades de elevado valor e a isenção dos rendimentos obtidos no estrangeiro - tem sido um mecanismo relevante de atratividade de Portugal. E nos anos de crise terá alimentado algum dinamismo no setor imobiliário. Quanto, não sabemos ao certo. Contudo, se o ex-vereador Robles gerou uma mais-valia significativa com o prédio a meias com a sua irmã, em parte poderá agradecer a este e outros instrumentos legais que agora o seu partido pretende reformular.
De um ponto de vista técnico, o tema das pensões deve ser resolvido, sendo efetivamente inaceitável que o regime português possa contribuir para a não tributação destes rendimentos, gerando despesa noutros Estados. A introdução de uma taxa de tributação mínima pode resolver este tema. Por outro lado, o tema da efetiva permanência ou preenchimento dos critérios de residência não é uma especificidade deste regime, antes resvalando para o domínio da fiscalização. Nesta matéria, como noutras, importa lidar com a crescente mobilidade das pessoas. Onde fica a residência de um artista internacional que viaja parte significativa do ano em concertos? No limite, o mesmo reside num Bombardier.
Ainda vamos a tempo, mas temo o pior. Não questiono a necessidade de monitorização e avaliação dos benefícios fiscais em rigor. É o dinheiro de todos que está em jogo para benefício de alguns. Mas pior que nada fazer é introduzir alterações alimentadas por ‘sound bytes’. Pode dar votos, mas não resolve os problemas do País.
Este artigo foi redigido ao abrigo do novo acordo ortográfico.
Comecemos por um número impressivo, 11,7 mil milhões de despesa fiscal. Corresponde a cerca de 6% do PIB. Colocada a questão nestes termos, difícil será não concluir que temos despesa fiscal a mais que poderia ser distribuída em salários ou pensões. O que tem sido omitido à opinião pública é que deste montante, 7,5 mil milhões dizem respeito às taxas reduzidas de IVA - maioritariamente ditadas por razões sociais. E já agora que Portugal tem das taxas de IVA mais elevadas da União. Assim, já só sobram 4 mil milhões. É dinheiro. Contudo, e como reconhece o grupo de trabalho responsável pelo estudo ora publicado, a dita despesa fiscal é calculada com base num modelo estático, ou seja, apura-se o valor de receita que seria obtido se o benefício fiscal não existisse. Os efeitos multiplicadores sobre a economia ou os comportamentos induzidos nos agentes económicos não são avaliados, dada a complexidade do seu apuramento. São, portanto, 4 mil milhões de receita virtual. Mas caros leitores, se o legislador, ao invés de criar um benefício fiscal, decidir retirar um determinado facto tributário da respetiva norma de incidência - retirando-a do campo de aplicação do imposto - já não temos tecnicamente um desagravamento fiscal (veja-se o exemplo da anterior não incidência de IRS sobre as mais-valias de ações). A exceção vira regime regra e não há desagravamento. Confuso, não é?
De um ponto de vista técnico, o tema das pensões deve ser resolvido, sendo efetivamente inaceitável que o regime português possa contribuir para a não tributação destes rendimentos, gerando despesa noutros Estados. A introdução de uma taxa de tributação mínima pode resolver este tema. Por outro lado, o tema da efetiva permanência ou preenchimento dos critérios de residência não é uma especificidade deste regime, antes resvalando para o domínio da fiscalização. Nesta matéria, como noutras, importa lidar com a crescente mobilidade das pessoas. Onde fica a residência de um artista internacional que viaja parte significativa do ano em concertos? No limite, o mesmo reside num Bombardier.
Ainda vamos a tempo, mas temo o pior. Não questiono a necessidade de monitorização e avaliação dos benefícios fiscais em rigor. É o dinheiro de todos que está em jogo para benefício de alguns. Mas pior que nada fazer é introduzir alterações alimentadas por ‘sound bytes’. Pode dar votos, mas não resolve os problemas do País.
Este artigo foi redigido ao abrigo do novo acordo ortográfico.
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