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04 de Julho de 2019 às 11:08

Benefícios fiscais: um debate inquinado à partida

Não questiono a necessidade de monitorização e avaliação dos benefícios fiscais em rigor. É o dinheiro de todos que está em jogo.

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A política fiscal é dos poucos instrumentos de política económica e social verdadeiramente estruturais e de impacto orçamental imediato. Se a primeira função dos impostos é obter receita, o mesmo não deixa de cumprir importantes funções extrafiscais, como o fomento da atividade económica, a captação de investimento ou o esbatimento de desigualdades sociais. O tema da despesa pública associada à concessão de benefícios fiscais é terreno fértil para o combate político. Pior que tudo, é terreno fértil para a contaminação da opinião pública, assim se justificando opções políticas muitas das vezes discutíveis. O debate sobre a reforma e monitorização dos benefícios fiscais não fugirá à regra.

Comecemos por um número impressivo, 11,7 mil milhões de despesa fiscal. Corresponde a cerca de 6% do PIB. Colocada a questão nestes termos, difícil será não concluir que temos despesa fiscal a mais que poderia ser distribuída em salários ou pensões. O que tem sido omitido à opinião pública é que deste montante, 7,5 mil milhões dizem respeito às taxas reduzidas de IVA - maioritariamente ditadas por razões sociais. E já agora que Portugal tem das taxas de IVA mais elevadas da União. Assim, já só sobram 4 mil milhões. É dinheiro. Contudo, e como reconhece o grupo de trabalho responsável pelo estudo ora publicado, a dita despesa fiscal é calculada com base num modelo estático, ou seja, apura-se o valor de receita que seria obtido se o benefício fiscal não existisse. Os efeitos multiplicadores sobre a economia ou os comportamentos induzidos nos agentes económicos não são avaliados, dada a complexidade do seu apuramento. São, portanto, 4 mil milhões de receita virtual. Mas caros leitores, se o legislador, ao invés de criar um benefício fiscal, decidir retirar um determinado facto tributário da respetiva norma de incidência - retirando-a do campo de aplicação do imposto - já não temos tecnicamente um desagravamento fiscal (veja-se o exemplo da anterior não incidência de IRS sobre as mais-valias de ações). A exceção vira regime regra e não há desagravamento. Confuso, não é?

Olhemos, agora, por exemplo para um benefício fiscal que tem sido objeto de muita discussão pública e cuja reforma já está anunciada, o regime de residente não habitual. Sabe-se, agora que existem cerca de 30.000 beneficiários, dos quais 2.200 estão registados como de elevado valor acrescentado. E sabe-se que esses mesmos 30.000 beneficiários pagaram 80 milhões de euros de IRS em 2017. A suposta despesa fiscal é de 593 milhões de euros. Contudo, o mesmo grupo de trabalho admite que sem esses mesmos benefícios grande parte dos beneficiários não seriam residentes em Portugal. Logo a despesa é mesmo virtual. E que falta apurar a receta adicional obtida - impostos diretos e indiretos - bem como os efeitos multiplicadores no consumo, emprego e VAR. O regime vai ser alterado sem que se tenha uma ideia real do impacto económico da medida desde a sua entrada em vigor em 2009. Aliás, apenas com a obrigação de identificação do beneficiário efetivo é que se poderá ter uma ideia do número de empresas e investimentos realizados através de Portugal por esses mesmos beneficiários. O regime de RNH - que genericamente prevê uma tributação de 20% para determinadas atividades de elevado valor e a isenção dos rendimentos obtidos no estrangeiro - tem sido um mecanismo relevante de atratividade de Portugal. E nos anos de crise terá alimentado algum dinamismo no setor imobiliário. Quanto, não sabemos ao certo. Contudo, se o ex-vereador Robles gerou uma mais-valia significativa com o prédio a meias com a sua irmã, em parte poderá agradecer a este e outros instrumentos legais que agora o seu partido pretende reformular.

De um ponto de vista técnico, o tema das pensões deve ser resolvido, sendo efetivamente inaceitável que o regime português possa contribuir para a não tributação destes rendimentos, gerando despesa noutros Estados. A introdução de uma taxa de tributação mínima pode resolver este tema. Por outro lado, o tema da efetiva permanência ou preenchimento dos critérios de residência não é uma especificidade deste regime, antes resvalando para o domínio da fiscalização. Nesta matéria, como noutras, importa lidar com a crescente mobilidade das pessoas. Onde fica a residência de um artista internacional que viaja parte significativa do ano em concertos? No limite, o mesmo reside num Bombardier.

Ainda vamos a tempo, mas temo o pior. Não questiono a necessidade de monitorização e avaliação dos benefícios fiscais em rigor. É o dinheiro de todos que está em jogo para benefício de alguns. Mas pior que nada fazer é introduzir alterações alimentadas por ‘sound bytes’. Pode dar votos, mas não resolve os problemas do País.

Este artigo foi redigido ao abrigo do novo acordo ortográfico.
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