Opinião
Bastar não é em si o bastante
O "basta!" que José Sócrates gritou, estentórico, na Madeira, contra os privilégios fiscais e a impunidade sob a capa da qual Alberto João Jardim tem ultrapassado os limites do endividamento da ilha ...
O "basta!" que José Sócrates gritou, estentórico, na Madeira, contra os privilégios fiscais e a impunidade sob a capa da qual Alberto João Jardim tem ultrapassado os limites do endividamento da ilha, causou alvoroço e irritação não apenas no presidente regional, como nos seus apaniguados. O mais impaciente deles, porventura, foi o deputado Guilherme Silva, averiguadamente nervosíssimo, durante uma sessão de esclarecimento proposta por Mário Crespo, na SIC-Notícias. De seu hábito contrito e polido, Silva quebrou o verniz e expôs uma indisposição desabrida. Com suave persuasão, o excelente Mário Crespo conseguiu o retrato inquieto de um homem em busca da razão que lhe faltava.
Claro que o "basta!", de Sócrates, levado até aos limites da legalidade, sacode o pedestal em que Jardim se colocou; mas pode, igualmente, causar perturbações populares na ilha. A saber: circunscrito às receitas próprias (IRS, IRC e IVA), e posta de lado a antiga capitação nacional, o governo da Madeira ver-se-á submetido a gerir o dinheiro que obtiver, sem o apêndice oriundo do "continente", como Jardim gosta de salientar. Neste caso, as "obras" que tem realizado, num território que o salazarismo votara ao mais indigno esquecimento, abandonarão o ritmo até agora registado. A ilha entrará, assim, em pé de igualdade com as outras regiões do País. E o cumprimento da lei será igual em todo o País. A pedagogia republicana, exercida sobre a população madeirense, como estímulo para a cidadania e para o entendimento da realidade legal, evitará, certamente, o rebuliço, o descontentamento e a crispação de que Jardim se servirá como arma de arremesso.
A política do confronto verbal, a chantagem, a arrogância e a fanfarronice têm sido a táctica e a estratégia do presidente da Região. Insulta, injuria, calunia, infamemente e sem punição, os mais altos dignitários do Estado, de Presidentes da República a primeiros-ministros, de representantes da República na ilha a ministros, dirigentes partidários, jornalistas, escritores, deputados da oposição. Parecia invulnerável à própria lei, e acima dos limites da decência e da discrição que devem ser comuns a quem faz da política um particular desempenho de missão.
O "basta!", de Sócrates, não põe fim à incivilidade do senhorito. Mas constitui, aparentemente, uma reviravolta na ineficácia de sucessivos governos, claramente amedrontados por um discurso truculento de legitimação das mais inacreditáveis ilegalidades. Creio que algo vai mudar nas complexas relações de poder entre o governo da Madeira e o governo da República. No quadro do que se tornou resignação e cobarde complacência, José Sócrates demonstrou que a exigência de cidadania e a aplicação da lei são sempre mais altas do que os ataques do populismo mais soez.
No entanto, o "basta!", de Sócrates, não poderá limitar-se à reposição da legalidade (porque é de isso que se trata) na ilha da Madeira. A exclamação deve ser alargada às áreas da vida portuguesa que têm beneficiado de extraordinárias condescendências. Basta à morosidade aviltante da justiça, à tolerância aos crimes de colarinho branco, à indignidade das falências fraudulentas, às reformas escabrosas de "gestores" da banca pública, às incompatibilidades entre o exercício de funções administrativas e as avenças mensais de poderosas empresas nacionais e multinacionais, às tentativas (cada vez mais conseguidas) de privatização da saúde, da assistência social, das reformas. Quanto à assim chamada "concertação social", o governo precisa de uma base social de apoio (na verdade, não dispõe dela), que sustente a maioria parlamentar e os projectos de reforma - desde que estes sejam a favor dos mais desfavorecidos.
José Sócrates deve atender, por exemplo, às vozes dissentes de militantes e de dirigentes socialistas, preocupados com a deriva do governo, tão jubilosamente aplaudido por todos os sectores da Direita. Como acentuou Helena Roseta, em entrevista a Pedro Correia, no "Diário de Notícias", o mal-estar alastra, até porque "alguns dirigentes do PS deixaram de acreditar numa sociedade solidária". E adiantou: "Onde está o modelo de sociedade solidária no percurso de homens como António Vitorino e Pina Moura?"
São acusações terríveis. Diz, ainda, Helena Roseta: "O partido funciona de maneira muito fechada, há muita hierarquia, há muito temor reverencial em relação ao secretário-geral". Helena Roseta avisa, com outro registo: Basta, José Sócrates! Há algo de essencial no projecto socialista que precisa de ser preservado. E quase tudo desse projecto foi aniquilado, postergado e traído. Consubstancial à democracia é a atenção dada às classes mais desprotegidas. Este governo não o tem feito. O pleno emprego de recursos e de energias criativas tem sido descurado. A emigração de gente altamente qualificada avoluma-se. O deserto do interior é correlativo à fuga do trabalho e da inteligência. Não nos é proposta, politicamente, a variedade de escolhas sociais, como se o "mercado" fosse a única via possível. E não é: até porque está em debate a sua eficácia geral, e em causa a sua bondade.
Compreende-se, facilmente, o que quer José Sócrates, e o modelo de sociedade imposto com extrema violência e um elevado grau de soberba. Esquece-se, o primeiro-ministro, da pulsão democrática, exposta ou latente, que exige uma ordem político-social escorada na equidade, na defesa de valores solidários e na garantia de direitos fundamentais. Diariamente assistimos à execução de actos que contrariam estes princípios e tripudiam sobre estas concepções.
O "basta!", de Sócrates, deve dirigir-se, também, a ele próprio. Algumas das suas decisões são acertadas; algumas outras são manifestamente injustas. Pessoal e intelectualmente acredito que a democracia é um movimento com diversas componentes, porém com um objectivo comum: a realização do bem e a propugnação de um valor soberano entre os demais - o de que sejam os homens a definir o seu destino.
José Sócrates concentrou, em si, um amplo coeficiente de esperança que, pouco a pouco, tem destroçado. A maioria absoluta de que dispõe permite-lhe manobrar, impor, aplicar, fixar a seu modo e, quase, a seu bel-prazer. Mas a maioria absoluta de que dispõe não lhe permite que disponha, absolutamente, do nosso futuro. O alvoroço de reformas, o bulício de resoluções, a agitação com que se desmultiplica podem ser úteis ao alinhamento dos telejornais, e servir de viático para o alegre paleio dos compadres de A Quadratura do Círculo - todavia, passam ao lado das nossas urgências e das angústias dos mais aflitos, porque cada vez mais ignorados.
O "basta!", de José Sócrates, não é em si o bastante.