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24 de Setembro de 2012 às 23:30

Assustados com o fantasma de Glass-Steagall?

Glass-Steagall foi uma distracção naquela altura; também é uma distracção agora. Se o objectivo é fortalecer os pontos fracos revelados pela crise financeira global, os responsáveis políticos dos Estados Unidos e de outros países devem procurar outra alternativa.

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A lei Glass-Steagall de 1933, que gerou polémica durante muito tempo por separar a banca comercial da banca de investimento nos Estados Unidos, voltou a ser notícia. Esta separação simbolizou durante muito tempo a história invulgar da regulação bancária norte-americana – provavelmente, a mais invulgar do mundo desenvolvido.

Durante muito tempo, a regulação bancária dos Estados Unidos manteve os bancos norte-americanos pequenos e locais (incapazes de ramificar para fora do estado), ao contrário dos bancos europeus e japoneses, ao mesmo tempo que limitava a sua capacidade operacional (impedindo-os de combinar a banca comercial com a de investimento). Estes limites persistiram até aos anos noventa, quando o Congresso revogou a maior parte desta estrutura regulatória. Mas agora, a ideia de uma nova Glass-Steagall está de volta, e não apenas nos Estados Unidos.

Sandy Weill, CEO do Citigroup, disse no mês passado que permitir a fusão dos bancos comerciais com os de investimento foi um erro. Trata-se do mesmo Weill que fez lóbi para erradicar a lei Glass-Steagall e construir o Citigroup actual, que reuniu bancos comerciais, corretores de valores mobiliários e empresas de seguros sob o mesmo tecto. Na verdade, Weill desenhou um acordo de fusão do Citi com uma grande seguradora – algo ilegal na altura, de acordo com a Glass-Steagall – e, de seguida, forçou a revogação da lei, de modo que a fusão pudesse prosseguir.

Um debate semelhante está agora em curso no Reino Unido. Uma comissão liderada por Sir John Vickers, economista de Oxford e antigo economista-chefe do Banco de Inglaterra, pretende que as operações da banca de retalho sejam "protegidas" dos riscos da banca de investimento. Esta delimitação não é exactamente ao estilo de Glass-Steagall – Glass-Steagall proibia a afiliação dos bancos comerciais com os de investimento –, mas o espírito é o mesmo.

O ímpeto para repensar esta lei é, naturalmente, a recente crise financeira. As pessoas perguntam-se se Weill e Vickers estão certos, ou se Weill estava certo há vinte anos, quando defendia a fusão da banca comercial com a banca de investimento.

Esta é, na verdade, a pergunta errada para se fazer em primeiro lugar. A primeira questão é se a revogação da lei Glass-Steagall contribuiu fortemente para a crise financeira nos Estados Unidos. Se assim foi, a revogação da lei Glass-Steagall deve ser revista, e rapidamente. Se não contribuiu muito para a crise, manter separadas as operações de risco e a base de depósitos da banca comercial ainda pode ser desejável, ainda que a crise financeira não tenha "provado" ser necessário.

Aqueles que dizem que a recente crise financeira indica que devemos voltar a implementar a lei de Glass- -Steagall, ignoram o que falhou e o que não falhou: os maiores fracassos na crise de 2008 – Lehman Brothers, AIG e Reserve Primary Fund – não eram bancos comerciais de captação de depósitos sobre os quais a revogação da lei de Glass-Steagall teve um grande impacto. AIG era uma megaseguradora. Lehman era um banco de investimento. O Reserve Primary Fund era um fundo comum de investimentos no mercado monetário, não um banco comercial.

É verdade, a maioria dos bancos comerciais, como o Citibank e o Bank of America, cambalearam, mas não estavam em risco devido à subscrição de títulos para clientes corporativos ou as suas divisões de operações com títulos, mas por causa da forma como (incorrectamente) geriram os títulos hipotecários. Os créditos hipotecários, contudo, são uma actividade de longo prazo para os bancos comerciais, que não foram muito afectados pela lei de Glass-Steagall ou pela sua revogação.

Algumas actividades dos bancos comerciais estão mais próximas da negociação de valores mobiliários. A chamada "Regra Volcker", proposta por Paul Volcker, antigo presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos, é uma mini Glass-Steagall, com o objectivo de proibir a captação de depósitos pelos bancos comerciais a partir da negociação de derivados – agora vista como uma actividade perigosa para eles. Embora as operações com derivados tenham desempenhado um papel importante na crise (a incapacidade da AIG para honrar os seus arriscados Credit Default swaps sem ajuda governamental é o melhor exemplo), a revogação da lei de Glass-Steagall não desencadeou as operações mais arriscadas das instituições que falharam. A sua reactivação servirá de pouco, se é que terá algum efeito, além do que a Regra Volcker supostamente já faz.

O melhor argumento contra a revogação da lei Glass-Steagall não é que a fusão da banca comercial com a banca de investimento provocou a crise. Pelo contrário, o melhor argumento surge de uma percepção geral de que as instituições financeiras se tornaram demasiado complicadas para serem reguladas e demasiado grandes para cair, inclusivamente quando se mantêm dentro dos seus negócios tradicionais. Por isso, devemos simplificá-las e fortalecê-las.

Mas, mesmo que sejam esses os objectivos, o actual foco na revogação da Glass-Steagall não é útil, porque não é a melhor forma de simplificar e fortalecer os bancos norte-americanos. Assim, desvia a atenção dos responsáveis políticos das questões principais. Se a crise financeira revela um problema estrutural no sector bancário, é mais provável que provenha da insuficiência de capital para amortecer a queda de um banco, ou da quantidade de instituições financeiras que se tornaram grandes demais para cair.

A legislação norte-americana Dodd-Frank, aprovada em 2010, limitou (debilmente) o tamanho das futuras fusões de bancos. Mas, se o problema está no tamanho, há mais por fazer. Se os grandes bancos se tornaram demasiado complexos para serem regulados, então uma Regra de Volcker viável é a melhor forma de começar a simplificação. E, se o problema são as operações sistemicamente arriscadas com derivados dos bancos e outros agentes, então a prioridade dada aos operadores de derivados sobre quase todos os credores deveria ser restringida.

Ironicamente, a lei Glass-Steagall surgiu na década de 1930, a partir dos esforços dos banqueiros comerciais para desviar a atenção dos reguladores de outras soluções. Os banqueiros das cidades pequenas de todo o país desejavam uma garantia de depósitos com aval do governo, enquanto os bancos mais sólidos, das cidades grandes, temiam que o seguro de depósitos governamental os colocasse numa situação de desvantagem competitiva. Afinal de contas, os depósitos dos bancos das pequenas cidades fluíam para os grandes bancos de centros financeiros como Nova Iorque, Chicago e Los Angeles.

Há duas décadas, Donald Langevoort, agora professor de Direito em Georgetown, demonstrou que os principais banqueiros – na verdade, os líderes do First National City, o predecessor do Citibank de Weill – propuseram a Glass-Steagall em vez da garantia de depósitos. Nenhum dos grandes bancos estava em risco devido à negociação de valores mobiliários naquela altura, mas os seus afiliados na banca de investimento não estavam a gerar dinheiro com as suas operações de intercâmbio e subscrição de títulos durante a Depressão, e assim, os bancos estavam dispostos a renunciar a essa parte dos seus negócios. A ironia é que o Congresso aceitou a oferta dos grandes bancos para separar a banca comercial da banca de investimento, mas, em seguida, aprovou o seguro de depósitos.

Glass-Steagall foi uma distracção naquela altura; também é uma distracção agora. Se o objectivo é fortalecer os pontos fracos revelados pela crise financeira global, os responsáveis políticos dos Estados Unidos e de outros países devem procurar outra alternativa.

Project Syndicate, 2012.
www.project-syndicate.org

Tradução: Rita Faria

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