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15 de Dezembro de 2008 às 14:25

As virtudes esquecidas do livre comércio

"O laissez-faire", disse recentemente o presidente francês Nicolas Sarkozy, "terminou". Talvez, mas deveremos ficar realmente satisfeitos se ele tiver razão? Se o "laissez-faire" desapareceu, o que poderá substituí-lo como alicerce de uma sociedade aberta e global?

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"O laissez-faire", disse recentemente o presidente francês Nicolas Sarkozy, "terminou". Talvez, mas deveremos ficar realmente satisfeitos se ele tiver razão? Se o "laissez-faire" desapareceu, o que poderá substituí-lo como alicerce de uma sociedade aberta e global? Agora mais do que nunca, vale a pena lembrar que o último grande "crash" financeiro não só inspirou o "New Deal" nos Estados Unidos, como também mergulhou o mundo numa nova época sombria de nacionalismo e imperialismo económico. O livre comércio está longe de ser perfeito, mas as alternativas são piores. O proteccionismo é mau para a criação de riqueza, mau para a democracia e mau para a paz.

No entanto, existe o perigo genuíno de uma nova vaga de proteccionismo. Barack Obama, ao apelar ao crescente sentimento proteccionista entre os americanos, ameaçou durante a sua campanha presidencial reescrever unilateralmente o Acordo Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA). Em Julho último, a ronda comercial de Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC), não deu frutos, em parte porque os Estados Unidos se recusaram a reduzir os seus subsídios à agricultura.

O mundo desliza progressivamente para o nacionalismo e a exclusão. Se um governo pode intervir para resgatar bancos à beira da falência, por que não proteger também as suas empresas ou agricultores em apuros?

Precisamos de um novo acordo para o comércio. Actualmente, fala-se muito de um "Bretton Woods II", destinado a reestruturar as finanças globais, a promover a sustentabilidade e a oferecer aos países em desenvolvimento "ajuda para as trocas comerciais". Contudo, para ser eficaz, qualquer novo acordo que pretenda promover o comércio deve ter algo mais em consideração do que apenas um novo conjunto de instituições internacionais. É necessária uma reforma democrática, das bases até ao topo.

De facto, este requisito tem raízes históricas. Habituámo-nos de tal forma a pensar no livre comércio como uma questão especializada reservada aos economistas liberais e negociadores comerciais envergando fatos escuros que até nos esquecemos que há um século o livre comércio era uma convicção central para muitos democratas, radicais, activistas femininas e mesmo da mão-de-obra sindicalizada.

Naquela época, a Grã-Bretanha estava numa posição não muito diferente da actual situação em que se encontram os Estados Unidos: uma superpotência em relativo declínio, confrontando-se com novos concorrentes e reacções de forte oposição à globalização. Em finais do século XIX, todas as potências levantaram as suas barreiras comerciais - excepto a Grã-Bretanha.

A postura da Grã-Bretanha encerra várias lições que nos são úteis nos dias de hoje. A maior parte dos economistas salienta a superioridade do modelo de livre comércio e apontam o poder dos "lobbies" e grupos de interesse para explicar a sua falta de popularidade na prática. Conforme disse o presidente da Reserva Federal norte-americana, Ben Bernanke, a expansão comercial cria inevitavelmente alguns perdedores, cujos protestos desviam a atenção dos benefícios da globalização.

Isso é verdade, mas é apenas metade da história, pois ignora como, em momentos cruciais da História, o livre comércio obteve o apoio de muitos daqueles que ganhavam com esse modelo.

Há um século, durante uma das primeiras crises da globalização, a procura de livre comércio na Grã-Bretanha inspirou um genuíno movimento de massas. Não se tratou simplesmente de uma causa preciosa para os banqueiros, para os comerciantes ou para o jovem John Maynard Keynes. Foi uma causa que mobilizou milhões de pessoas. Para as mulheres, que continuavam a estar privadas do direito de voto, o livre comércio era uma espécie de substituto da cidadania: o parlamento salvaguardava os seus interesses enquanto consumidoras, ao manter aberta a porta das importações baratas. Para muitos democratas, era uma força potenciadora de paz e justiça social que minimizava o poder dos interesses especiais e ensinava os cidadãos a compreender o que era a equidade e os acordos internacionais.

Não devemos romantizar aquela época muito incipiente do livre comércio. A pobreza não desapareceu. Muitos britânicos acreditavam num "Império do Livre Comércio". Outros atiçavam as chamas do antagonismo anglo-alemão, caricaturando a Alemanha proteccionista como uma sociedade selvagem que sobrevivia à base de salsichas de cavalo e carne de cão: Lloyd George, o futuro primeiro-ministro, clamava publicamente que tinha mais medo da salsicha alemã do que da marinha daquele país.

Uma das razões pelas quais o livre comércio derrotou o proteccionismo na Grã-Bretanha há um século prende-se com o facto de os seus defensores apelarem às emoções e identidades das pessoas e não apenas ao seu racional interesse em comida barata e prosperidade. Os liberais e radicais organizaram espectáculos ambulantes, criaram "posters" a cores e ofereceram entretenimento político. Nas cidades, as montras das lojas ilustravam os custos das tarifas alfandegárias para os consumidores em geral. No campo, as pessoas assistiam, pela noite fora, a projecções de diapositivos sobre política. As reuniões nas estações balneares chegaram a cativar perto de um milhão de pessoas em 1910. Quando é que foi a última vez que você foi à praia e deu consigo mergulhado num debate acerca de preços?

A Primeira Guerra Mundial e os anos 20 abalaram todas as crenças ingénuas no livre comércio puro e duro. Tal como hoje, os consumidores descobriram que os mercados os poderiam deixar numa situação de impotência, o que levou a um coro de apelos em favor da regulação. Os internacionalistas tiveram que se adaptar ao simples facto de que o comércio, por si só, não constituía um acesso automático à paz. A globalização económica ultrapassou a política, gerando novos focos de tensão em torno do petróleo e de outros recursos estratégicos. As instituições políticas viram-se perante a necessidade de recuperar do seu atraso.

Bretton Woods e o Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio (GATT) criaram uma nova ordem a seguir à Segunda Guerra Mundial. Em termos económicos, tiveram um êxito considerável. As tarifas alfandegárias desceram, ao passo que as barreiras não alfandegárias e os acordos preferenciais aumentaram. Mas em termos de cultura democrática, o GATT levou também a uma maior separação entre o comércio e a política do quotidiano. É por isso que o livre comércio tem estado tão indefeso perante os protestos anti-globalização.

A boa notícia é que as pessoas não deixaram de se preocupar com a ética do comércio. Pelo contrário, viraram-se para outros movimentos, como o comércio justo e a justiça comercial. Para ser justo, a OMC sob a presidência de Pascal Lamy tentou chegar a esses grupos. Mas há ainda um longo caminho a percorrer até restabelecermos os laços entre um comércio mais livre e a cidadania e solidariedade global. A História mostra que fazê-lo é possível e necessário.

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