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19 de Outubro de 2004 às 13:59

Artes mágicas

É ao oportunismo político, muito mais que ao enquadramento internacional, que devemos a estagnação económica em que caímos.

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O primeiro sentimento que suscita a observação dos dados divulgados com respeito ao OE para 2005 é a admiração pela modéstia do ministro das Finanças com respeito aos seus poderes mágicos.

Senão vejamos:

O ministro garante que os funcionários públicos serão aumentados em 2,2%. A redução do número de funcionários é pouco expressiva e tem dado lugar a um elevado número de contratações para os gabinetes ministeriais, onde os salários estão longe da moderação que se impõe aos restantes. Além disso, as pensões dos funcionários aposentados permanecem como parte integrante da massa salarial, sendo, aliás, de estranhar que até agora nenhum governante se tenha lembrado de fornecer os dados necessários para identificar essa parcela, cujo crescimento é não só extremamente rígido, mas cada vez mais responsável pelo aumento da massa salarial global. Pois bem: face a estes dados, quem suspeitaria que o acréscimo previsto das despesas com pessoal em 2005 não ultrapassasse 1,6%?

Uma das explicações é a reclassificação em investimento do PIDDAC das despesas correntes de vários organismos, nomeadamente ligados à investigação científica, aliás com consequências complicadas para o seu funcionamento. Contudo, a nível das despesas de investimento o mistério é ainda maior: o PIDDAC anuncia um acréscimo de 13,9%, mas as despesas de capital apenas crescem 2,8%.

A lista de exemplos poderia continuar, mas basta referir que o total das despesas cresce 2,5%, não obstante todos os aumentos anunciados e nenhuma redução concreta e palpável. Pode, pois, concluir-se que o ministro, dando-se conta das suas limitações na matéria, recorreu em grande escala às artes de magia que abundam entre os especialistas da contabilidade pública, conseguindo certamente cumprir todas as regras desta, mas remetendo para o mais esconso dos arquivos os conceitos de transparência e rigor conceptual.

Depois da experiência de 2001, que repetiu outra mais grave que esteve na origem da crise de 1983, o mínimo que se poderia esperar era que os responsáveis políticos tivessem posto um termo definitivo à floresta de enganos que entre nós dá pelo nome de contabilidade pública. O trabalho tinha sido iniciado pela Comissão chefiada por Vítor Constâncio e integrada por técnicos competentes na matéria, e era mais do que chegado o momento de o completar, passando da correcção dos dados de 2001 à das regras que tinham permitido o desastre. No entanto, a bandeira do rigor das contas não passa disso mesmo. Na prática, traduz-se no princípio de que as «nossas» artimanhas são boas, porque servem os nossos objectivos, enquanto as artimanhas «deles» são más pela razão simétrica. Dada a alternância partidária no governo do país, só nos restam as artimanhas, continuando a faltar as políticas sérias capazes de fazer alcançar objectivos que excedam os das clientelas partidárias, para se preocuparem com o desenvolvimento da economia e da sociedade portuguesas.

É ao oportunismo político, muito mais que ao enquadramento internacional, que devemos a estagnação económica em que caímos. Entre 2002 e 2004, o crescimento acumulado da economia portuguesa foi de 0,2%, quando o Programa de Estabilidade apresentado em Janeiro de 2003 previa para o triénio uma variação acumulada do PIB de 4,8%. Mesmo o modesto crescimento da Zona Euro foi de 3,1%, o da UE de 3,9% e o da Espanha de 7,4%. É claro que as culpas da estagnação são partilhadas, mas importa notar que, quando esse Programa foi elaborado, o passado já era conhecido e a política delineada destinava-se a corrigi-lo.

No plano das contas públicas, a degradação foi maior. Em Janeiro de 2003, previa-se que o défice orçamental se reduziria para 1,1% do PIB em 2005 e que o rácio da dívida pública se situaria em 55,3% do PIB, ligeiramente abaixo do de 2001 (55,7%). O Relatório do OE para 2005 informa-nos de que o saldo orçamental efectivo (excluindo medidas extraordinárias) nunca foi, ao longo do triénio, inferior aos tristemente famosos 4,1% de 2001, tendo-se cifrado em 4,1% em 2002, 5,4% em 2003 e 4,8% em 2004. Em 2005, estaremos ainda em 4,2%.

Quanto à dívida pública, não obstante o efeito da alienação de activos, o respectivo rácio já ultrapassou em 2004 o limite de 60% imposto pelo Pacto de Estabilidade, tendo atingido os 62%. Em 2005, o agravamento será maior, continuando e expandindo-se as operações de «regularização de dívidas» no sector da saúde, agora estendido às obras públicas. O problema não está, como é óbvio, em o Estado pagar o que deve. Está sim, em ter ficado a dever, o que significa que realizou despesas para além do contemplado no orçamento. A anterior ministra das Finanças exprimiu a esse propósito a doutrina correcta quando se tratou das dívidas do anterior governo. Mais uma vez, porém, a prática manteve-se.

Em síntese: a retórica esbarrou na realidade e manteve-se a incapacidade política para ir às raízes dos problemas. Não será com o OE para 2005 que a situação se altera. O pouco crescimento da economia vai continuar a gerar mais importações que exportações e a perda de postos de trabalho nos sectores transaccionáveis permanece. Quanto ao sonho da Madeira da Europa, é melhor descer à terra: os votos portugueses não influenciam os orçamentos dos países que teriam de financiá-lo.

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