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04 de Agosto de 2003 às 09:46

Adeus Pacto de Estabilidade, viva o regresso ao risco!

Não é só o termo défice estrutural que soa a ciência esotérica. A coisa é mesmo nebulosa. Tão nebulosa que os governos em maiores apertos querem acreditar que, a coberto das suas imensas sombras, vão enganar os mercados.

Por Jorge Campos da Costa

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A Alemanha e a França, os dois pesos pesados da Zona Euro, eventualmente com a ajuda da Itália, o terceiro na lista dos mais poderosos, preparam-se para dar cabo do Pacto de Estabilidade. Como?

Os dois primeiros furando pela terceira vez consecutiva, em 2004, o limite dos 3% de PIB para o défice nominal, imposto pelo referido Pacto. A Itália dará o seu mais modesto seu contributo, juntando-se nesse ano ao grupo dos faltosos.

De tudo isso, restará que uma parcela correspondente a 69% da economia da União Monetária estará na parte vermelha do mapa reservada às áreas em défice excessivo.

O agoiro não vem de um qualquer analista. Veio recentemente da Standard&Poor"s (S&P), a influente agência de notação de risco de crédito, que, com as suas classificações, acaba por dar aos mercados indicações sobre o preço que devem fazer pagar aos diversos países, quando estes a eles recorrem para financiar os seus défices, em função do que presumem ser a disciplina financeira vigente em cada um.

E como é que os furos alemão e francês terão a virtude de fazer soar o toque de finados sobre o Pacto? Muito simplesmente arranjando uma “interpretação mais flexível” daquilo que ele estipula claramente, libertando-os do vexame das multas devidas pela persistência em défice excessivo, sem que tenha ocorrido qualquer das circunstâncias que o Pacto prevê como cláusula de excepção – uma recessão profunda, ou uma catástrofe natural.

A interpretação mais flexível que se vai arranjar já se está a ver qual é: foco no défice estrutural em vez do défice nominal. Os países que andam a pular a cerca deverão ver os seus compromissos limitados a uma redução de 0,5 pontos percentuais nos seus défices estruturais. Os défices nominais podem esperar.

Os economistas não gostam de ouvir isto, mas não é só o termo défice estrutural que soa ciência esotérica. A coisa é mesmo nebulosa. Tão nebulosa que os Governos mais apertados em dificuldades querem acreditar que, a coberto das imensas sombras do défice estrutural, vão conseguir enganar os mercados e fazer passar a mensagem de que o Pacto sobrevive, mesmo não accionando os mecanismos contra quem não cumpre.

O défice estrutural tem a virtude de permitir multiplicar para além do imaginável as técnicas de distorção dos números, muito para lá daquilo que os governos europeus faziam até agora com uma destreza já surpreendente. Com a vantagem de serem técnicas definitivamente fora do alcance de qualquer esforço honesto de compreensão por parte da opinião pública em geral.

O défice estrutural é o défice nominal, corrigido dos efeitos do ciclo económico. Tipicamente, na fase baixa do ciclo, uma economia evolui abaixo do seu potencial, ou seja, do nível correspondente ao pleno uso da capacidade produtiva, normalmente equivalente ao emprego máximo sem gerar tensões inflacionistas.

Nessas fases, há desemprego a mais, provocando despesa pública adicional, e impostos a menos, por falta de actividade. A diferença entre o nível potencial e o nível efectivo chama-se “hiato do produto” e é por esse “hiato” que se calcula a correcção a fazer ao défice efectivo. E é então que começa a magia. Primeiro, no cálculo do hiato.

Depois na relação hipotética entre variação do hiato e a variação do défice efectivo, para obter o défice estrutural. Não há poucas metodologias para o fazer, e na sua escolha começa a discricionaridade. Depois, mesmo usando sempre a mesma metodologia, os resultados alteram-se com o tempo, à medida que se consolidada a informação passada.

A S&P analisou o caso italiano. Em 1999, de acordo com a metodologia da OCDE, previa-se que em 2000 o hiato italiano seria negativo em 2,8% do PIB. Agora sabe-se que foi negativo nuns marginais 0,2%. O défice nominal acordado em 1999 para dar corpo ao compromisso de uma redução qualquer do défice estrutural em 2000 – ter-se-ia visto depois – teria errado em 1,3% do PIB. Ou seja, qualquer coisa vale.

“Usar um conceito de base tão ambíguo como o hiato do produto” para ancorar compromissos “fará com que a responsabilização e a transparência” da política orçamental na União Monetária “seja afectada, e a credibilidade do Pacto de Estabilidade e Crescimento sofra um golpe fatal”, diz a S&P em conclusão.

“Num tal cenário”, prossegue o aviso, “os emitentes soberanos (leia-se, países) com um mais fraco registo histórico de desempenho orçamental orientado para a estabilidade orçamental poderiam ser os mais afectados”. Portugal, mesmo cumprindo à risca os seus compromissos nominais, estaria na lista negra dos mercados. Adeus juros baixos com o enterro do Pacto. O prémio de risco estará, em breve, de volta.

Jorge Campos da Costa, Redactor Principal.

Artigo Publicado no Jornal de Negócios

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