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A via europeia

Se é certo que o mundo não acabou após o massacre de Nova Iorque, muitos foram os que então perderam a cabeça e nunca mais a voltaram a encontrar.

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Tanto erro e incompetência depois e o planeta está menos seguro, as nossas vidas mais condicionadas e nenhuma solução razoável para a crise profunda que se instalou transparece no horizonte. Ao horror do terrorismo veio juntar-se a tragédia da luta conta o terrorismo. Enquanto o pensamento livre e dinâmico próprio de sociedades livres e dinâmicas foi ocupado por um jargão ideológico extremamente reaccionário que muito nos prejudica enquanto cidadãos e impede o poder político de agir com um mínimo de coerência.

Dois aspectos são particularmente graves. A doutrina, rigorosamente fascista, de que o mundo se divide em nós ou eles, e a ideia de que devemos estar dispostos a abdicar da liberdade para ter mais segurança.

No primeiro caso, não será preciso ir muito longe para se saber que o discurso dos bons e dos maus é invariavelmente o fermento dos maiores abusos e crimes, constituindo a base ideológica das ditaduras e antecâmara de todas as perseguições e atrocidades. A história está recheada de exemplos. A começar por esse caldo de cultura extremista e fanático que leva homens a espetar-se contra arranha-céus em nome de uma causa e de um Deus. Sendo bom não esquecer que o fundamentalismo islâmico assenta precisamente no confronto primário do nós ou eles. Ou seja, o mesmo que agora nos querem vender como justo.

O valor maior da democracia, que é exactamente o pluralismo, reside no entendimento de que a realidade não pode ser reduzida a dois campos antagonistas e de que a civilização se constrói na multiplicidade das posições políticas, por muito díspares que pareçam ser. Por isso não é aceitável que tantos políticos e intelectuais nos pressionem a tomar posição entre uma de duas atitudes, nesse reducionismo imbecil, onde quem não alinha com a estratégia em curso faz o jogo dos terroristas. A lucidez e a convicção democrática exigem outras vias e hoje mais do que nunca é necessário ter a coragem de afirmar o pluralismo contra a unicidade. No dia em que eu não tiver a faculdade de escolher entre mais de duas opções, então a democracia morreu. Então regressaremos ao extremismo e ao totalitarismo.

No mesmo plano, é incrível a facilidade com que responsáveis políticos, fazedores de opinião e intelectuais apelam a uma diminuição das liberdades cívicas, em nome de uma segurança que nem sequer poderá ser garantida. Séculos de lutas pela liberdade são assim deitados para o lixo com uma desfaçatez que a história não deixará de registar.

Atitude tanto mais grave e irresponsável quando se sabe que uma tal perda de liberdade só é possível, pelo menos no mundo ocidental, através de um crescente autoritarismo político e repressão policial.

Ainda que de momento as sondagens, condicionadas pela opinião publicada e pelos media, afirmem o contrário, nem europeus, nem americanos, nem povos que vivem em regimes de liberdade democrática estarão no plano do concreto dispostos a abdicar dos seus modos de vida baseados na livre circulação de pessoas e bens, nas liberdades cívicas, no direito à reunião e à opinião, no direito à privacidade e em geral no direito de não serem perseguidos por ideias, convicções e comportamentos singulares. E se nas nossas sociedades as pessoas, no fim do dia, quererão retomar as suas vidas independentes, do mesmo modo toda a actividade cultural, social e económica não pode prescindir da liberdade. O sucesso da sociedade ocidental, a sua prosperidade e dinâmica, deriva inteiramente do culto e da prática da liberdade. Sem ela não há ocidente.

Por isso estes constantes apelos a uma limitação das liberdades são tão obviamente incongruentes. Prejudicam tanto os indivíduos quanto a própria vida colectiva. Hoje uma boa parte da actividade económica assenta na criação e distribuição de ideias e inovação. Ora a criatividade sem a mais extensiva liberdade não é possível. Restringir as liberdades é matar o desenvolvimento social, cultural e económico.

Por fim se é certo que nem todo o planeta se acha afectado por esta inconsequente guerra ao terrorismo, basta pensar na China que tem aproveitado plenamente a distracção, a Europa tem sofrido bastante com o descalabro. É por isso que precisamos de um impulso de renovação dos sistemas políticos europeus e de recentramento dos seus objectivos. Desde logo acelerando o processo de globalização cultural e económica, em particular combatendo a miséria lá onde ela cria as condições objectivas para o recrutamento de terroristas.

Para a Europa a actual crise devia servir para de uma vez por todas se clarificar a verdadeira natureza do projecto europeu, o qual não pode ser outro senão construir uma federação europeia, com uma constituição única e um governo federal. O mundo, e naturalmente antes de mais o mundo ocidental, precisa de uma via europeia para a crise em que se encontra mergulhado. E essa via não pode senão significar a consagração de uma Europa unida politicamente mas cumpridora dos valores do pluralismo e da liberdade. Insisto. A Europa é o mais fascinante projecto civilizacional da nossa era. Está na hora de o retomar.

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