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A morte do Baltazar

"O Século Ilustrado" foi uma revista semanal de grande tiragem e custava relativamente pouco aos patrões porque era organizada com recortes de publicações estrangeiras, especialmente italianas. Assinei, nas suas colunas, um rebarbativo...

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"O Século Ilustrado" foi uma revista semanal de grande tiragem e custava relativamente pouco aos patrões porque era organizada com recortes de publicações estrangeiras, especialmente italianas. Assinei, nas suas colunas, um rebarbativo comentário de cinema, a par da crítica de teatro, subscrita por Redondo Júnior, chefe da Redacção. Entrava às 10 da manhã, saía às 16, para, às 17 horas, marcar o ponto n' "O Século", rematando a jornada pelas 3 horas da manhã.

A rotina prolongou-se por anos e anos. Eu era um rapazola esgalgado, emproado e arrogante, esbanjava energia, e fiz a aprendizagem da escrita com uma gente amargurada e sem esperança, mas que sabia de jornais como nunca mais vi assim.

É, apesar de tudo, um desfile luminoso. Pudera! Falo da minha juventude e dos anos da construção. E estes rostos, estes gestos, estas acções e comportamentos emergiram-me da memória ao ler, no "Diário do Alentejo" de 11 de Junho, que morreu, com 90 anos, o grande caricaturista Baltazar Ortega, ou, simplesmente, Baltazar, como ele assinava. Os grandes rotativos emudeceram, as televisões ignoraram o facto; e, no entanto, o homem que morreu era um caricaturista e um desenhador de génio. A sua dimensão não cabia, por exemplo, naquele estranho programa da Paula Moura Pinheiro, "Câmara Clara", mais propenso à fuga de telespectadores do que a dar informação de quem vale mesmo a pena.

O Baltazar paginava a revista "Modas & Bordados", caricaturava para "O Século Ilustrado", para a "Vida Mundial" e para o que precisassem todas as publicações, de que era proprietária a família Pereira da Rosa. Os seus admiráveis desenhos, que foram-se apurando e sofisticando com o correr dos anos, possuíam a rara qualidade do desenho, descritivo, forte e severo, e o objectivo de contarem, sempre e sempre, uma história. E a própria história do Baltazar era invulgar: "groom" (moço de recados, mandarete) no Café Chiado de boa memória, desenhava os rostos dos clientes, por sinal a nata da cultura portuguesa. Um autodidacta sem reservas nem omissões. Certa tarde, Leitão de Barros, frequentador do café, descobriu o rapaz e o seu prodigioso talento. Levou-o para o "Notícias Ilustrado", de que era director, e o rapaz modesto, discreto e tímido não tardou a ser conhecido nos meios culturais de Lisboa. Mais tarde, Leitão de Barros zangou-se com os patrões do "Diário de Notícias" (proprietário do "Notícias Ilustrado") e transferiu-se, com armas, bagagens e colaboradores para "O Século Ilustrado." Logicamente, levou consigo o Baltazar Ortega.

O rapaz foi logo apadrinhado pelos jornalistas das diversas Redacções. E era pessoal da pesada. Além de Redondo Júnior, pertenciam aos diferentes quadros (claro que em diferentes épocas) Guedes de Amorim e Guedes de Dion, Armindo Blanco (eu fui da última leva: quando ingressei n' "O Século" estava a completar 18 anos e o Baltazar tocava os quarenta e). E havia a Etelvina Lopes de Almeida (que substituíra a grande Maria Lamas na direcção de "Modas & Bordados"), a Margarida Tengarrinha, a Lita, a Maria do Rosário, mulheres cheias de história e de dignidade, cuja lembrança me enche de orgulho. Um rol imenso de colaboradores assegurava as edições. E havia jornalistas lendários como Carlos Ferrão, organizador da "Vida Mundial", seleccionando artigos da Imprensa estrangeira, depois traduzidos por profissionais experimentadíssimos. Carlos Ferrão lia seis ou sete idiomas, não falava nenhum, alimentava três paixões: a mulher, D. Dulce; a Casa Pia, onde fora professor; e a República. Sobre a República era um paladino virulento. Não podiam tocar, ao de leve que fora, na sua dama: ela saltava logo, de pena em punho que se transformava num aríete implacável. [Como, há meses, António Rêgo Chaves escreveu, neste jornal, não perdemos tempo ao recuperar a leitura de Carlos Ferrão: a actualidade permanece]. Aliás. Ele enchia boca de altivez quando de si própria dizia: "Sou um jornalista republicano."

O Baltazar era acarinhado por estes homens só aparentemente rudes. E, se me permitem, eu também, um miúdo no meio de gente maior. Outros dois desenhadores completavam a equipa: Domingos Saraiva, que, tal como o Baltazar, paginava "O Século Ilustrado" e desenhava os títulos, e era um fervoroso admirador de toureiros e de touradas. Ele próprio usava chapéu à Mazantino e botas de campo com calças afiambradas. E, igualmente, o Meco, o doce e bondoso Meco; Victor da Silva; e Rodrigues Alves, de cultura invulgar, sempre disposto a estar ao lado de quem dele precisasse; prodigioso desenhador, professor na Escola de Artes Decorativas António Arroyo.

Discreta mas conhecidamente era tudo gente de Esquerda. A Margarida Tengarrinha entraria, depois, na clandestinidade, como membro importante do PCP. Mas a formação moral deles impedia-os de se tornar impositivos. Chamavam a atenção para o que era injusto e absurdo. O Baltazar, procedente das camadas mais humildes da população, era, naturalmente, de Esquerda, e penso que até morrer foi simpatizante comunista.

Ao ler a notícia do seu falecimento no "Diário do Alentejo" relembro algumas das muitas notáveis caricaturas que assinou, durante décadas e décadas. Lamentando, veementemente, que os "donos" dos salões e os "historiadores" de arte tenham atirado para o limbo um artista invulgar como foi Baltazar Ortega.

b.bastos@netcabo.pt





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