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Opinião
16 de Agosto de 2005 às 13:59

A lógica do inferno

Bentinho corre ladeira abaixo, riscando o poeirame com as roditas, do carro de arame, feitas de caricas de cerveja. Os pés descalços derrubam o capim, que nesta época do ano se estica céu acima, reacordado do solo depois da queimada de Verão, que um relâm

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Há séculos, milénios mesmo, que o ritual se repete naqueles azimutes, devolvendo à Terra, os segredos dos cheiros e sabores, que a natureza lhe sugou.

Quando as primeiras chuvas incham de vida o mato próximo, Bentinho arrepia-se com aquela benção do capim queimado, que ressuscita em novo ciclo, as cinzas da morte.

O menino cresceu homem. Calçou sapatos de outro continente e para ele migrou, qual ave refugiada do Inverno da miséria, tornado permanente, ou assim, cada vez mais, parecendo.

Bentinho deita tijolos num prédio qualquer, que se vai somando na floresta de cimento, semeada por todo o lado. Cada bloco de betão tem vistas para outro betão, sarcófagos de uma existência onde rareiam flores e sonhos.

Experimenta fechar os olhos, tirar os sapatos, queimar até, um tarolo das obras, para – no iludir dos sentidos – regressar a um Mundo onde se pode ser menino, mesmo sendo grande. Madala de bengala na mão e brilhos na alma.

Mas estas são fogueiras onde da cinza só se ceifa a morte. E ninguém o percebe. Ou o parece entender, ao ritmo a que se vai pavimentando, acimentando, montando tapumes de solidão.

Bentinho afoga o bicho que lhe rói de fome as entranhas, numa golada de tintol, comprado na única taberna que ainda sobrevive, no fundo do bairro, à competição dos hipermercados e onde, a cada emborcanço martelado, se diluem as raças e os sonhos.

O negro aninha-se mais próximo dos borralhos da fogueira que se some, no chão de obra ainda nu. Janelas e portas adivinhadas no tosco, onde um jornal, abandonado, chora em títulos garrafais, que o país inteiro é pasto de chamas.

Ele pega nas folhas amarrotadas. Alisa-as com a mão e só agora repara no cimento seco, que lhe empedra as unhas, como se o quisesse arrastar, paredes adentro. Torná-lo tijolo do prédio que vai subtraindo o céu, os brilhos do rio e o abanar do arvoredo, no coração de todos.

Bentinho corre a lavar as mãos, como se assim escapasse da parede que o vai absorvendo e descobre-se a sorrir, menino traquinas que iludiu o destino, e assim adormece, apagando-se de levezinho, como a fogueira, trocada por fumo e cinzas.

«Portugal é o país da Europa com maior percentagem de florestas ardidas». Bentinho sonha que o título do jornal é uma celebração de vida e não de terror. Sonha que, afinal, tudo não passa das queimadas africanas, onde o capim arde para se eternizar, noutra vida.

E ele fica a imaginar homens e mulheres, velhos e novos, de fósforos na mão, ateando os pinhais, os eucaliptais, serras e vales, todos os Verões, como se um ritual de vida se tratasse. Afinal faz sentido não desperdiçar dinheiro em meios aéreos para travar os lençóis de fogo, mesmo quando o prejuízo material e ecológico dos incêndios é muito superior à tal factura.

Que sabe ele, pobre negro, ignorante das letras e dos números, vergado pela vida no carrego de baldes e alinhamento de tijolos, quando o branco, Europeu, letrado, doutor, tem certamente tudo estudado, previsto e acertado?

Bentinho sorri, em paz, finalmente. Se calhar, também aquele subtrair do céu, dos brilhos do rio, do abanar dos arvoredo, também faz parte do «grande plano», que – só porque lhe escapa a ele, a compreensão – foi certamente pensado. Por alguém mais bem preparado. Mais bem ensinado.

Bentinho volta a sonhar.  Mas o carrinho que conduz,  continua a ser de arame, a rolar, ladeira abaixo, em rodas de caricas. O negro acorda, sobressaltado. Olha pela janela de tijolo nu e arrepia-se com o cheiro, familiar, do vento.

O Mundo, afinal é o mesmo. As pessoas é que não.

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