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19 de Novembro de 2004 às 13:59

A independência da subsídio-dependência

Na verdade, o que vinga à conta de mérito próprio representa a mais feroz ameaça à sobrevivência dessa vasta e por-toda-a-parte disseminada espécie sorridente e discretamente apostada em enfiar a mão na bolsa do Estado. Estão em causa perspectivas - e mod

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Um dos mais evidentes sinais e causas da continuada e persistente debilitação do poder político nas últimas décadas do nosso Portugal transparece bem da contradição entre, por um lado, um discurso que proclama o imperativo de um «eterno descanso» à dita subsídio-dependência e, por outro lado, a prática da coisa pública em Portugal. Não raramente, aquele discurso e esta prática, são imanentes a um mesmo protagonista.

Precisamente porque assente numa tradição cultural profundamente enraizada - alimentada por meio século de obscurantismo e proteccionismo económico -, um genuíno combate à «subsidite aguda» exigiria um poder político forte, persistente, determinado e frontal. Mas não, quase duas décadas corridas desde a adesão à União Europeia, todos constatamos quão longe estamos ainda de ver concretizada essa muito espinhosa - mas em todo o caso alegadamente imperiosa - missão.

Esta constatação resiste bem ao estafado argumento do «conflito de gerações». Infelizmente, creio que, nos mais jovens, a interiorização e colagem ao que a «subsidite» tem de pior é, perversamente, crescente. Há uns tempos atrás, num desses intervalos que nas minhas aulas reservo para conversar sobre outros temas, aparentemente desligados dos formalismos e abstracções da Economia - mas, e friso, só aparentemente -, o animado debate enveredaria para a arena do eterno «público versus privado».

Paradoxalmente - ou talvez não, o leitor aferirá - uma proporção impressionantemente elevada daquela plateia revelar-se-ia convictamente inclinada em prol de argumentos como «as portagens não devem existir», «o Governo deve apoiar e proteger aquela empresa que-está-para-fechar», «o Estado é mais sério que os privados», «ninguém enriquece honestamente».

Públicas virtudes, privados vícios! Afinal, a essa geração que todos apontamos como «o nosso futuro» não será nada alheia a tese casamenteira segundo a qual a apropriação privada de benefícios é o par ideal para a nacionalização dos prejuízos; pelo que devem casar (ou optar pela união de facto), ter filhos, sob firmes juras de eterna fidelidade. Não, a praga da subsidite não se dissipará só pelo correr do tempo e inerente sucessão de gerações.

Não se estranhe, por isso, em todas as dimensões e sectores da vida económica, da agricultura aos serviços, da indústria à construção civil, da universidade aos institutos públicos, a frequência com que se pretende atingir os que - por mérito, inteligência e iniciativa própria, ou até com ajuda de pitada de sorte - vingam com sucesso nos seus projectos, dispensando a manjedoura dos apoios públicos e rejeitando dar eco a essa bafienta lamúria continuadamente alimentada pelos que reclamam do Estado a resolução de todos os (seus) problemas.

Na verdade, o que vinga à conta de mérito próprio representa a mais feroz ameaça à sobrevivência dessa vasta e por-toda-a-parte disseminada espécie sorridente e discretamente apostada em enfiar a mão na bolsa do Estado. Estão em causa perspectivas - e modos de vida - diametralmente opostos. Dificilmente - senão impossivelmente - conciliáveis. Os subsídio-independentes constituem-se, assim, a principal ameaça à extinção de uma espécie dominante. E são, por essa mesma razão, o alvo prioritário a abater. Um numeroso exército de franco-atiradores, estrategicamente posicionados em todas as esquinas de bom ângulo, atirará a matar sempre que as circunstâncias o permitam.

Talvez assim se compreenda melhor porquê, ao cabo de quase duas décadas de generosas ajudas comunitárias a Portugal, tantos são os que apontam a irreparável e voraz delapidação de riqueza a que se assistiu. Pior, em antecipação da expectável míngua de ajudas comunitárias que o Alargamento ao Leste inevitavelmente imporá a partir de 2007, a Legião da subsídio-dependência revela-se agora mais assanhada que nunca. É o «vale-tudo», característico do saque perpetrado sobre a cidade conquistada às tropas inimigas.

Não obstante, o sistema político revela a mais absoluta e inoperante impotência - quando não a mais conivente das boas convivências - perante essa praga de sanguessugas.

Aliás, consultando com atenção, um a um, as largas dezenas de decretos, portarias e regulamentos que suportam a infindável parafernália de «instrumentos de apoio» - ao investimento, à inovação, à investigação e desenvolvimento, etc. etc. - percebe-se bem que, em Portugal, a propalada supletividade do Estado no apoio à economia e às empresas é, tão só, Rei-Que-Vai-Nú. Com frequência que já não surpreenderá senão os mais incautos, a regulação de tais instrumentos processa-se não na óptica da defesa do interesse público mas, isso sim, verga-se de cócoras perante os lóbis e interesses que deliberadamente visa servir, num sistema que se auto-perpetua e se alimenta de si próprio.

Há dias, dei comigo a ler isto (sic): «O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Todo o viver espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretárias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce... A indústria enfraquece. O salário diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.»

Consta que um tal de Eça de Queiroz assinou. Liguei para o «118», mas o homem deve ter número de telefone confidencial. Assim, caso o leitor o conheça, rogo o favor de em meu nome interceder para que o sujeito não me faça mais sombra com tais dizeres. E, já agora, se não for demais, pergunte por favor ao Sr. Queiroz qual o alcance da piada em reportar o mesmo escrito a 1871... Porque, confesso, essa não percebi mesmo.

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