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18 de Março de 2011 às 11:40

A ignorância

Em muitos passeios das ruas anónimas da cidade de Colónia, na Alemanha, há uns pequenos mas solenes paralelepípedos de cobre embutidos no chão, mesmo junto às soleiras das portas.

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Parecem pequenas peças de um jogo para crianças, até que reparemos que neles estão inscritos os nomes dos cidadãos cirurgicamente raptados das suas próprias casas, levados para os campos de concentração que o III Reich preparara para eles. Este era o Estado sem Partidos, da mediação impossível, da guerra como consequência inevitável de um sistema desresponsabilizado, eufórico, insustentável, auto-celebrado, sem representados. A vingança tinha substituído a justiça, e o consumo, a segurança; do ponto de vista da História, esta barbárie foi "ontem". A paz chegaria da única forma possível: através da política, da mediação, da representatividade, da Democracia.

Com o fim das muletas geoestratégicas que foram a Guerra Fria e o Muro de Berlim, celebrámos a globalização; com Thatcher na Europa e Reagan nos Estados Unidos, trotámos os primeiros passos do futuro galope neo-liberal do primado da finança e dos mercados sobre a economia e os cidadãos. Cristalizámos assim a era dos "resultados", num convite à falta de escrúpulo emergente da corporativização da governação: como no séc. XVI, em que só depois de trazido o ouro se reconhecia o génio, o comércio transversalizou-se a toda a política, sendo dela principal credor. Há séculos que a palavra "progresso" é abusivamente usada em manobras de pura exploração da mão-de-obra, matérias-primas e divisas alheias, e o resultado está à vista, por todo o Norte de África, mas não só. Portugal saiu à rua recentemente para protestar, dizem alguns que "inspirado" pelos acontecimentos no Egipto; é porém evidente que tal comparação só pode caber no anedotário da novela emotiva e confusa com que o circo mediático nos tem agarrados pelos cabelos, arrastando-nos à espera do próximo episódio, fazendo com que tudo seja possível, porque nada parece possível. Neste vazio, neste perigo eminente, uma coisa é, porém, certa: a manifestação do passado sábado só foi possível porque vivemos numa Democracia consolidada. Ela foi pacífica e conduzida em nome da sustentabilidade, e não da sobrevivência, como na Praça Tahir. No seu rescaldo, os mesmos agentes mediáticos que tinham especulado sobre a sua motivação, trataram (num acto de ignorância da sua pluralidade evidente) de rotular este protesto, travestizando-o de geracional ou de motivações melodramáticas. Estas sibilas tentaram, assim, transformar demagogicamente uma evidência - a insatisfação generalizada com a classe política - numa exigência: o seu fim. Estes desvios têm servido sistematicamente para ocultar a falta de coragem para abordar a questão dos Partidos como essencial à equidade do regime; é um debate que não arranca no Portugal mediático e institucional, apesar de não faltarem matéria e evidências. A última vez que uma revolução em Portugal reclamou o fim da classe política, foi para instaurar o que viria a ser o Estado Novo, em 1926; e aí sim, durante três quartos desse obscuro século, Portugal andou perto do Egipto no tocante aos índices imparcialmente aceites como forma de avaliar o (sub)desenvolvimento das nações - saúde pré e neo-natal, analfabetismo e acesso ao ensino, por exemplo, bateram recordes sinistros.

Demócrito - filósofo grego do séc. IV a.c. com certeza pouco lido nos intervalos para "make up" dos estúdios de televisão, ou nos "briefings" com vista para o néon dos escritórios das agências de "rating" - afirmou um dia que "a ignorância do bem é a causa do mal". Por mim, vi a nossa manifestação multigeracional como um factor de alavancagem da auto-estima, assumindo que respeitá-la não é fazer qualquer uso dela, mas celebrá-la incondicionalmente. Compro, portanto, contratos futuros do protesto do passado dia 16, pela forma como relevou a necessidade de colocarmos a sustentabilidade à frente de qualquer outra prioridade governativa; aquele sábado merece figurar como um dos momentos mais altos da Economia portuguesa.

Ninguém, mesmo que à rasca - para usar a estafada e pouco criativa palavra - quer o fim dos Partidos nem da Política. "Nein, danke".
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