Opinião
A firma Balsemão
"O neoliberalismo nada resolve". A frase não pertence a nenhum irritado militante de Esquerda, ou coisa semelhante. Foi seu autor o dr. Francisco Pinto Balsemão, que também criticou, veemente, a invasão do Iraque, que "nada resolveu, pelo contrário".
O famoso patrão dos media, militante número um do PSD, proferiu aquela e outras afirmações numa reunião, no Porto, na qual se discutiu a "revisão do programa" daquele partido. A imprensa, sempre em lufa-lufa de imagética, atribuiu escassa importância ao discurso de Balsemão, embora o que este disse tivesse significado e peso. Dedicou-se, a confusa imprensa, a abrir espaço mais amplo a Pacheco Pereira, também falante na reunião, que nada adiantou ao que, desde há décadas, de sobejo se sabe: "o PSP violou a programa e a matriz identitária".
Pacheco procede do maoísmo. Balsemão nunca abjurou das suas convicções. Foi, sempre, social-democrata, com uma prática que correspondia à sua cultura e à noção de eficácia. Nada tem a provar. E observa, com especial ironia, certas afirmações de conteúdo. A "matriz identitária" do PSD é uma ambiguidade, que resguardou gente de todas as procedências, inclusive da extrema-direita.
Sá Carneiro estava empenhado na luta contra a hegemonia do PCP, e seria um eufemismo dizer que, naquela época, de luta de classes muito marcada, ele manifestava interesse prioritário na construção da "social-democracia". Aliás, os documentos políticos daquele partido defendiam a criação de uma sociedade sem classes, "a caminho do socialismo". A bizarria correspondia às pressões históricas, e a insegurança social poderá esclarecer e, até, justificar, adesões precipitadas à "causa da revolução".
O PSD foi, pois, um "partido revolucionário", aliado da "revolução", embora abrigasse quem, à sorrelfa, defendia ideais contra-revolucionários, o que também não é de estranhar. Aliás, nada é de estranhar, na convulsa agitação dos anos de PREC. Quem os viveu, jamais os esquecerá: pertencem à aura de muitos sonhos e esperanças, posteriormente derrogados – inclusive por aqueles, provindos da "extrema-esquerda", e hoje, como todos os neoconversos, alegoricamente apressurados em proceder a constantes "aggiornamentos".
Que pretende fazer Pacheco Pereira que Pinto Balsemão não deseje? Realizar o fundamento "social-democrata" que o partido, onomasticamente recolhe, e averiguadamente não pratica, nunca praticou, sobretudo agora, que o PS está, sem evasivas, voltado à direita? O que Pacheco Pereira "denuncia" como "erros do PSD" pertence, irremediavelmente, à história do partido. Segundo alguns "doutrinadores", as condições obrigam ao pragmatismo. Porém, quem cria as condições são os mesmos que as podem modificar. Pacheco pretende refundar o PSD, o que me parece absolutamente impossível. As pessoas que compõem os seus quadros dirigentes permitiram a deriva de Cavaco Silva, quando primeiro-ministro (aí, sim, a antisocial-democracia a todo o vapor, além de numerosos sotaques de extrema-direita autoritária), e as aventuras de Durão Barroso e de Santana Lopes.
As proposições de Pacheco não deixam de possuir um elevado grau de astúcia política. Seja o que se lhe aponte, o homem é hábil e, como todos aqueles ex-militantes comunistas, aprendizes da vulgata marxista, sabe muito bem de táctica e de estratégia. Depois, ao invés da esmagadora maioria dos "políticos" em uso, sabe quem é Herman Broch, não confunde Albioni com Alberoni, leu Platão e Aristóteles, e não diz que Crátilo é uma doença venérea. Além disso, tem defendido a integridade moral, sobrepondo-se à onda de indignidades que varre de ignomínia todos os partidos.
Ele percebe a desfaçatez de um Governo atrabiliário, que administra o País com mão pesada e obtusa contundência. Sabe, também, que o trabalho de Sócrates não constitui nenhuma contribuição para nenhum dos problemas pendentes. Mas também não ignora que, se o PS é um partido rendido aos fascínios do mercado e aos alvoroços do clientelismo, o PSD é uma federação de ressentimentos, e não se recomenda pela coesão ideológica.
Luís Marques Mendes é objecto das mais tenebrosas intrigas e das mais indecorosas acusações. De medíocre a leviano, de incompetente a tolo, já de tudo e do mais foi acusado. Luís Filipe Meneses parece-me bom chefe de família, mas receio que a livre expressão dos seus nobres sentimentos não diga respeito aos talentos exigidos a um político. Meneses é pior do que Mendes, que é um pouco melhor do que Durão e, em comparação com o inexaurível Santana, apresenta-se como uma obra-prima. Como se pode reparar, o quadro é por de mais sombrio.
Pacheco Pereira entendeu, igualmente, que a "herança" de Sócrates vai ser medonha, e em nada beneficiará o PSD, caso o PSD venha a ascender ao poder nos próximos anos. As "reformas" têm sido associadas aos indicadores estritamente económicos da situação social. Um país, como o nosso, onde a taxa de desemprego é sistematicamente maquilhada, para simples sustentação governamental, o facto de 90 mil pessoas terem desistido de trabalhar, por não terem no quê; de 64 mil subsistirem de biscates; e de mais de 570 mil trabalhadores estarem desempregados, e com poucas perspectivas de mudança – esse país carece do que é consubstancial à democracia: do discurso da verdade.
Quando pressagia, no Porto, a necessidade de o PSD ser "social-democrata" certamente compreendeu o que Francisco Pinto Balsemão enunciou: as relações entre democracia e mercado livre são altamente conflituais; e os movimentos civis, emergentes um pouco por todo o lado, caracterizam sinais perturbadores que precisam de ser descodificados.
Já se viu como precipitadas, desastrosas e deploráveis são as deliberações do Governo em matéria de Saúde, Educação, Cultura, Segurança Social, Defesa, Funcionalismo, Agricultura, por aí fora. Não se trata de combater as "corporações". Incorpora-se, esta política, numa impreparação para se ajuizar dos mecanismos sociais específicos do País, e aplicar-se regras violentíssimas a fim de se justificar o mercado.
Cito Jean-Paul Fitoussi ["La Démocratie et le Marché"]: "De pouco vale vencer a inflação, eliminar os défices, regressar ao crescimento se, na observação de Amartya Sen, a esperança de vida cair ampla e brutalmente, como aconteceu na Rússia". A continuação desta política provocará, inevitavelmente, graves crispações no tecido social português. A demonstrada ferocidade sobre o mundo do trabalho, a perversa insensibilidade das determinações do Governo, que martirizam reformados, velhos, mulheres e crianças (sim, crianças!) atingem proporções inauditas.
Esta gente enganou-nos, mentiu-nos, iludiu-nos, aproveitando-se, miseravelmente, do vácuo em que nos encontrávamos. E atirou-nos para outro vazio. De facto, o neoliberalismo nada resolve.