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A febre de Bolaño

Já é a segunda vez que leio um livro de Roberto Bolaño cheio de febre. A primeira foi em São Paulo, apanhei uma forte gripe logo à chegada - o contágio deve ter sido no avião -, e passei três dias fechado no quarto do hotel a ler Os Detectives Selvagens. Esta...

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Já é a segunda vez que leio um livro de Roberto Bolaño cheio de febre. A primeira foi em São Paulo, apanhei uma forte gripe logo à chegada - o contágio deve ter sido no avião -, e passei três dias fechado no quarto do hotel a ler Os Detectives Selvagens. Esta semana a febre voltou a atacar forte, não sei se catalogada na letra A, e assim, sujeito à rotina da maleita, li "A Pista de Gelo". Desconheço se o livro já foi traduzido em Portugal, mas, se não foi, em breve o será, porque o autor está na moda.

Da experiência reincidente aprendi que não há melhor maneira de ler os livros de Bolaño. Por uma razão aparentemente paradoxal. A febre nada acrescenta à escrita delirante, a essa torrente alucinante que da primeira à última página não parece ter sossego nem destino. Mas ajuda muito à imersão, porque aquilo que se mostra extravagante aos 37 graus, torna-se comum e plausível quando se passam os 39. Faz pensar naquele efeito óptico, em dias de muito calor, quando por cima da estrada o horizonte se agita ondulante e nós achamos isso belo e nada estranho. Ler Bolaño com febre é juntar ao relato, já de si bastante abrasador, o ambiente propício. A febre transporta a literatura de Bolaño ainda mais para o campo do possível.

E isso é fundamental. Porque o que realmente cativa nas histórias de Bolaño é precisamente o seu apego à realidade, a trivialidade das existências, o lado plausível de tudo o que sucede, mesmo quando parece ser um exagero ficcional.

Nestas historietas não há heróis, nem ninguém que realmente se aproveite. E digo historietas precisamente no sentido da sua desvalorização, já que nem as personagens nem as suas tramas ascendem ao estatuto de história. É quase tudo reles. Por vezes, alguém diz uma coisa interessante, surpreendente mesmo, mas nada que não se ouça da boca de um sem abrigo se tivéssemos tempo de o ouvir. Não temos, nem paciência. A sociedade está demasiado dividida para que nos ouçamos uns aos outros. Por isso as narrativas caóticas de Bolaño parecem tão estranhas, tão fora de lugar, tão "surrealistas", como por aí se diz num daqueles disparates da linguagem mediática. Pois que ao contrário do surrealismo esta escrita não nos afasta da realidade, mas antes mergulha profundamente nela até conspurcar tudo.

O sucesso de Bolaño deve-se a essa imersão febril numa realidade repugnante. Ao contrário da literatura superficial e fútil tão em voga, dos romances históricos sem qualquer interesse, às místicas para imbecis, esta descida à realidade impressiona pela sua capacidade de dar visibilidade ao que está escondido. É por isso uma escrita quase cinematográfica, com grandes planos gerais seguidos de zooms rápidos ao pequeno recanto até aí obscuro, e nojento.

É claro que existem muitos assuntos interessantes para ocupar as nossas mentes. É claro que a felicidade, não sendo abundante no planeta, emerge aqui e ali, por vezes quando menos se espera. Mas Bolaño escolheu dedicar-se ao que conheceu melhor: as vidas sórdidas e desamparadas. Os seus personagens não têm futuro, são instáveis, imprevisíveis, prisioneiros num vórtice de acções inconsequentes. Passam por tudo, são boas pessoas num momento, mas logo pulhas absolutos a seguir, amantes, ladrões, poetas, assassinos. Os lugares são geralmente sujos e lúgubres, repletos de coisas decrépitas, desarrumadas, restos de folhas, sacos de plástico que se agitam ao vento. As próprias histórias não têm moral, não pretendem dar lições a ninguém, não têm mensagem, e na maioria dos casos, nem sequer têm um final digno desse nome.

Enfim, Bolaño é um reaccionário, um descrente de um mundo em acelerada evolução mas fundado em enormes incongruências, misérias e injustiças. É, por outro lado, um excelente representante de um momento particular da cultura que parece oscilar entre o puro espectáculo e a resistência passadista, perdida, órfã de futuro. Uma cultura sem nada para oferecer, a não ser mal-estar e desorientação. Mas ao menos que isso seja feito com o talento de Bolaño. A ler. Se possível com febre.
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