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A Europa está doente

A Europa, como conceito "unitário", está gravemente enferma. Os retrocessos sociais a que temos assistido, com o aval de Bruxelas, atingem os territórios do escabroso. Preparam-se leis e "directivas" que põem em causa a natureza mesma de um projecto pretendidamente humanista.

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Não sabendo criar as condições necessárias ao equilíbrio de forças, os agora 27 aceitaram a linguagem cuneiforme e o discurso esteriotipado que têm dissimulado os verdadeiros objectivos políticos de uma "União" que é tudo menos isso. Na semana passada, Jorge Semprun, num lúcido pequeno artigo inserto em "Le Nouvel Observateur", perguntava se "a presidência francesa da União vai codificar, duravelmente, a hegemonia conservadora" numa Europa que só possui um governo social-democrata: o de Espanha.

Note-se que Semprun exclui da lista aqueles Executivos, apelidados de "trabalhistas" ou de "socialistas" (entre os quais o de Portugal), que nada têm a ver com as ideias de progresso, fundadoras do que se desejava fosse uma imensa comunidade de afectos, de interesses e de compreensão social. O princípio de "homem novo", adveniente das ruínas da guerra e dos sonhos políticos de homens da estatura de Konrad Adenauer, Alcide De Gasperi, Jean Monnet, Robert Schuman e Paul-Henri Spaak, pretendia, através de uma espécie de controlo jurisdicional e de convenções alargadas, evitar os riscos da inflação e os conflitos entre as nações. A esperança, embora vaga, nasceu em 1950, com o Tratado de Roma, corrigido, aumentado e afeiçoado (através de vicissitudes várias e complicadas) até à Europa dos 27. Como acentuou Mário Soares, "para se chegar aqui muitos esforços foram despendidos, muitos obstáculos ultrapassados."

Ingenuamente, supunha-se que, para a construção de uma Europa livre e economicamente forte, bastava a boa-vontade de políticos íntegros e honrados. O festim durou pouco. Cedo foi entendido que os sonhos da Esquerda não coincidiam com os interesses da Direita. E não é, apenas, o poder do eixo Alemanha-França que impõe as regras, embora as imponha, e duramente. Em causa está a completa ausência de um programa de acção conjunta para o futuro. Os grandes interesses económicos sobrepujam o ideal da Europa Social que nos foi prometida com fanfarra e atabales.

A Europa da tolerância é uma falácia. Depende das forças em presença. A Direita é hegemónica, e a Esquerda pouco mais é do que uma intenção benevolente e compassiva. O paradigma é outro – como, há já anos, advertiu Edgar Morin. Mas também não se sabe muito bem que paradigma é este. E a Europa, que se queria muito unida e muito feliz, é uma latente fonte de conflitos que podem tornar-se em gravíssimas erupções, cada vez mais alargadas. A Igreja, preocupada com os desenvolvimentos do que considera "terrível afirmação de antihumanismo", já alertou o mundo para o que se entabula, no silêncio dos gabinetes.

Quando se preparam "directivas" de exclusão do outro, neste caso dos imigrados, e se sugerem alterações nos horários de trabalho que podem (segundo a proposta "europeia") chegar às 62 ou às 68 horas semanais – há algo de muito errado, para não dizer de obsceno numa "União" que tinha a vontade (pelo menos afirmada em discursos e em manifestações de fé) de mudar a injusta ordem das coisas. As injustiças que "esta" Europa tem cometido e se prepara para praticar aniquilam, por completo, o vínculo social de que o projecto inicial era símbolo. E convém não esquecer que "esta" Europa, por se negar a condenar os voos da CIA, que transportam presos políticos, ou simples suspeitos, é cúmplice de um crime nefando.

O resultado do referendo irlandês, creio eu, está na base de um sentimento de não pertença que, segundo os naturais daquele país, lhes retirava a autonomia, a ponto de se diluir numa multiplicidade de espaços político-sociais sem qualquer razão de ser. O bulício provocado pelo "não", entre a Direita europeia, deve suscitar alguma reflexão e uma análise cuidadosa. A confusão do texto do Tratado de Lisboa foi objecto de críticas acerbas. A circunstância de o documento ser um remendo do anteriormente rejeitado fornece-nos a medida das injunções a que podemos estar sujeitos, através de normas cabalísticas, de difícil compreensão. Aliás, Ana Gomes, Fernando Rosas e Ilda Figueiredo (para nomear, somente, alguns) não se eximiram em execrar um Tratado que, segundo eles, pouco ou nada tinha a ver com a "Europa Social."

A pergunta a fazer: pode construir-se uma "União" onde a desunião faz a força, o mundo do trabalho é constantemente sovado e os direitos humanos são espezinhados?

APOSTILA – Entrei na Bertrand, avenida de Roma, e, entre alguns livros, adquiri "Um Café com Hemingway", da Plátano Editora, 145 págs., 8 euros e 40. É um pequeno volume, organizado entre perguntas e respostas, numa inteligente síntese sobre a vida e a obra do imenso escritor norte-americano. Pena é que as perguntas estejam impressas em azul desmaiado, o que dificulta, enormemente, a leitura. Na colecção "Um Café com" já foram editados textos sobre Marilyn, Mozart e Platão. O livro que tenho entre mãos, inclui um prefácio de John Updike. Não sou grande apreciador do romancista Updike. Sou-o, porém, do grande ensaísta que ele também (e sobretudo) é.

John Updik tem reflectido, ao longo dos anos, acerca da trajectória de alguns dos maiores prosadores e poetas norte-americanos e europeus. Ele continua a grande tradição crítica de Edmundo Wilson, o perspicaz exegeta da literatura do século XX, praticamente desconhecido em Portugal. Seria bom que os ensaios de um e de outro fossem publicados em Portugal. Talvez alguns "críticos" e "críticas" da Imprensa indígena aprendessem a remover preconceitos e a exercer a pedagogia do conhecimento – e da paixão. Sobretudo, a ler, efectivamente, os livros que comentam. Aqui fica o alvitre.

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