Opinião
A ciência económica e os investimentos públicos
O aparecimento de - até agora - 3 manifestos sobre o programa de investimentos públicos em infra-estruturas deveria ser saudado e constituir pretexto para o esclarecimento público sobre o tema fundado técnica e cientificamente...
O aparecimento de - até agora - 3 manifestos sobre o programa de investimentos públicos em infra-estruturas deveria ser saudado e constituir pretexto para o esclarecimento público sobre o tema fundado técnica e cientificamente.
Porém, a utilidade deste debate só se revelará se for possível ultrapassar o terrível atraso cultural que até agora tem marcado muitas das intervenções sobre o tema. O principal traço desse atraso consiste na tentativa de apoucar a ciência económica. Esta atitude é tanto mais grave quando provém também de alguns economistas que entraram na liça pondo em causa a capacidade da ciência económica para elucidar com rigor o problema, remetendo a disputa de opiniões para o terreno das diferenças ideológicas. O assunto resolver-se-ia, assim, através de atitudes declarativas e arrumando os argumentos em simples gavetas político-ideológicas.
A dificuldade referida está ampliada devido à destruição da capacidade técnica do Estado, destruída nos últimos 20 anos e que o tornou incapaz de fornecer estudos rigorosos e independentes; os valores dos indicadores relevantes transformaram-se assim em objectos de lamentáveis e injustificadas disputas.
Em vez de um refúgio preguiçoso em acantonamentos ideológicos, seria importante uma discussão séria da substância do problema.
A substância do problema consiste no impacto de longo prazo dos investimentos em infra-estruturas sobre o crescimento da economia portuguesa na medida em que tudo o resto - emprego, nível de vida, etc. - dele depende. Esta é a verdadeira questão que importa enfrentar - pese embora a influência de um certo keynesianismo primário ainda muito presente, para o qual o longo prazo não existe e a política económica vai pouco além de mandar abrir e tapar buracos.
O debate só pode ser útil se for suportado pelos resultados da melhor investigação económica. Sugiro que, para um conhecimento mínimo mas essencial, se consultem os estudos relevantes sobre a matéria, começando por um dos mais recentes e rigorosos trabalhos existentes(1); este estudo abarca o período entre 1960 e 2005 para os países da OCDE e contempla também a situação portuguesa. Atrevo-me, para conhecimento geral, a traduzir o seu resumo:
"O investimento nas redes de infra-estruturas - energia, água, transportes e telecomunicações - desempenha um papel vital para o bom funcionamento da economia e pode igualmente contribuir para o crescimento económico e o bem estar social. Contudo, mais investimento não é sempre benéfico. Embora o estudo mostre que o investimento em infra-estruturas tem tido efeitos positivos superiores ao que resulta da simples acumulação do stock de capital, há evidência de que no passado, por vezes, houve má afectação de recursos. Este estudo identifica o quadro de política económica que promove o investimento favorável ao crescimento e à boa utilização das infra-estruturas. Foram identificados os seguintes elementos centrais deste quadro: um processo robusto de tomada de decisão, uma melhoria da selecção dos projectos de investimento, a introdução de pressões competitivas por via da redução das barreiras à entrada e, se necessário, à desintegração vertical. Por outro lado, a eficiência do investimento pode ser melhorada combinando um regulador independente com uma regulação incentivadora."
Este estudo, bem como vários outros que o antecederam, representa um corte com o que antes se julgava saber acerca dos efeitos dos investimentos em infra-estruturas. Desde os anos 80 do século XX, e até esta recente vaga de estudos, julgava-se que aqueles investimentos produziam sempre efeitos fortes e positivos sobre o crescimento. A afinação das técnicas de medição dos impactos e, sobretudo, a adequada investigação econométrica da relação de causalidade entre infra-estruturas e crescimento permitiram modelar os resultados a um conjunto diversificado de situações. Este avanço possibilitou o entendimento e a integração de vários casos, combinação de elevados gastos em infra-estruturas com sofríveis resultados de crescimento.
Estes estudos evidenciam-se inegáveis efeitos positivos superiores até ao que seria de esperar do simples aumento do stock de capital, revelando a existência de externalidades positivas. Contudo, o efeito não é nem linear, nem universal. Verificam-se rendimentos decrescentes, com resultados a decrescer rapidamente à medida que os investimentos se vão acumulando. Por outro lado - e este ponto é fundamental para entender o caso português -, os efeitos não são iguais para todos os países: há situações tanto de subinvestimento como de sobreinvestimento.
Estes estudos, que na sua maioria visam os países da OCDE, apresentam valores para Portugal. Na maior parte dos casos, os estudos são consistentes entre si. Os resultados para Portugal indicam, em geral, efeitos muito reduzidos - e mesmo negativos, nalguns casos -, o que recomenda muita prudência na utilização dos investimentos em infra-estruturas como instrumento de estímulo ao crescimento da economia.
Estes resultados não deveriam surpreender-nos.
Assistimos, nos últimos 20 anos, a um formidável programa de infra-estruturas que mudou a face física do País, colocando-nos, nalguns casos, no topo dos países com melhores equipamentos, como é bom exemplo o sector das auto-estradas, conforme eu próprio evidenciei, com indicadores irrefutáveis, há um ano nesta coluna. Porém, o crescimento económico da última década foi insensível à execução daquele programa. O crescimento da primeira metade daquelas duas décadas não resultou - como muitos se iludiram, e por isso agora outros tantos querem copiar - do betão então abundantemente espalhado pelo País mas da abertura ao comércio e ao investimento internacionais que a entrada na Comunidade Europeia trouxe consigo. Esgotado aquele impulso, o crescimento caiu.
A nossa experiência poderia ser suficiente para intuir as limitações do investimento público em infra-estruturas como política de estímulo ao crescimento. Mas o nosso não é um caso raro e inexplicável. Os estudos recentes, com as técnicas econométricas mais apuradas, enquadradas pela reflexão económica mais abrangente, permitem entender a nossa situação como uma daquelas em que os investimentos públicos em infra-estruturas não são agora geradores de crescimento. Provavelmente, nunca o foram no passado.
Se quisermos evitar o desbaratar de recursos que nos vão ser necessários noutras áreas de promoção da competitividade geradora de crescimento, não podemos ignorar as contribuições mais rigorosas e actuais da ciência económica sobre a relação entre o crescimento e o investimento público em infra-estruturas.
(1) Égert, B., T. Kozluk e D. Sutherland, Infrastrucure Investment: Links to Growth and the Role of Public Policies", OECD Economics Department Working Papers, Nº 686, OECD, Paris, 2009. Acesso livre ao documento em: http://www.olis.oecd.org/olis/2009doc.nsf/LinkTo/NT00000E6A/$FILE/JT03261849.PDF
Director do ISG -Instituto Superior de Gestão
majesus@isg.pt
Coluna à terça-feira
Porém, a utilidade deste debate só se revelará se for possível ultrapassar o terrível atraso cultural que até agora tem marcado muitas das intervenções sobre o tema. O principal traço desse atraso consiste na tentativa de apoucar a ciência económica. Esta atitude é tanto mais grave quando provém também de alguns economistas que entraram na liça pondo em causa a capacidade da ciência económica para elucidar com rigor o problema, remetendo a disputa de opiniões para o terreno das diferenças ideológicas. O assunto resolver-se-ia, assim, através de atitudes declarativas e arrumando os argumentos em simples gavetas político-ideológicas.
Em vez de um refúgio preguiçoso em acantonamentos ideológicos, seria importante uma discussão séria da substância do problema.
A substância do problema consiste no impacto de longo prazo dos investimentos em infra-estruturas sobre o crescimento da economia portuguesa na medida em que tudo o resto - emprego, nível de vida, etc. - dele depende. Esta é a verdadeira questão que importa enfrentar - pese embora a influência de um certo keynesianismo primário ainda muito presente, para o qual o longo prazo não existe e a política económica vai pouco além de mandar abrir e tapar buracos.
O debate só pode ser útil se for suportado pelos resultados da melhor investigação económica. Sugiro que, para um conhecimento mínimo mas essencial, se consultem os estudos relevantes sobre a matéria, começando por um dos mais recentes e rigorosos trabalhos existentes(1); este estudo abarca o período entre 1960 e 2005 para os países da OCDE e contempla também a situação portuguesa. Atrevo-me, para conhecimento geral, a traduzir o seu resumo:
"O investimento nas redes de infra-estruturas - energia, água, transportes e telecomunicações - desempenha um papel vital para o bom funcionamento da economia e pode igualmente contribuir para o crescimento económico e o bem estar social. Contudo, mais investimento não é sempre benéfico. Embora o estudo mostre que o investimento em infra-estruturas tem tido efeitos positivos superiores ao que resulta da simples acumulação do stock de capital, há evidência de que no passado, por vezes, houve má afectação de recursos. Este estudo identifica o quadro de política económica que promove o investimento favorável ao crescimento e à boa utilização das infra-estruturas. Foram identificados os seguintes elementos centrais deste quadro: um processo robusto de tomada de decisão, uma melhoria da selecção dos projectos de investimento, a introdução de pressões competitivas por via da redução das barreiras à entrada e, se necessário, à desintegração vertical. Por outro lado, a eficiência do investimento pode ser melhorada combinando um regulador independente com uma regulação incentivadora."
Este estudo, bem como vários outros que o antecederam, representa um corte com o que antes se julgava saber acerca dos efeitos dos investimentos em infra-estruturas. Desde os anos 80 do século XX, e até esta recente vaga de estudos, julgava-se que aqueles investimentos produziam sempre efeitos fortes e positivos sobre o crescimento. A afinação das técnicas de medição dos impactos e, sobretudo, a adequada investigação econométrica da relação de causalidade entre infra-estruturas e crescimento permitiram modelar os resultados a um conjunto diversificado de situações. Este avanço possibilitou o entendimento e a integração de vários casos, combinação de elevados gastos em infra-estruturas com sofríveis resultados de crescimento.
Estes estudos evidenciam-se inegáveis efeitos positivos superiores até ao que seria de esperar do simples aumento do stock de capital, revelando a existência de externalidades positivas. Contudo, o efeito não é nem linear, nem universal. Verificam-se rendimentos decrescentes, com resultados a decrescer rapidamente à medida que os investimentos se vão acumulando. Por outro lado - e este ponto é fundamental para entender o caso português -, os efeitos não são iguais para todos os países: há situações tanto de subinvestimento como de sobreinvestimento.
Estes estudos, que na sua maioria visam os países da OCDE, apresentam valores para Portugal. Na maior parte dos casos, os estudos são consistentes entre si. Os resultados para Portugal indicam, em geral, efeitos muito reduzidos - e mesmo negativos, nalguns casos -, o que recomenda muita prudência na utilização dos investimentos em infra-estruturas como instrumento de estímulo ao crescimento da economia.
Estes resultados não deveriam surpreender-nos.
Assistimos, nos últimos 20 anos, a um formidável programa de infra-estruturas que mudou a face física do País, colocando-nos, nalguns casos, no topo dos países com melhores equipamentos, como é bom exemplo o sector das auto-estradas, conforme eu próprio evidenciei, com indicadores irrefutáveis, há um ano nesta coluna. Porém, o crescimento económico da última década foi insensível à execução daquele programa. O crescimento da primeira metade daquelas duas décadas não resultou - como muitos se iludiram, e por isso agora outros tantos querem copiar - do betão então abundantemente espalhado pelo País mas da abertura ao comércio e ao investimento internacionais que a entrada na Comunidade Europeia trouxe consigo. Esgotado aquele impulso, o crescimento caiu.
A nossa experiência poderia ser suficiente para intuir as limitações do investimento público em infra-estruturas como política de estímulo ao crescimento. Mas o nosso não é um caso raro e inexplicável. Os estudos recentes, com as técnicas econométricas mais apuradas, enquadradas pela reflexão económica mais abrangente, permitem entender a nossa situação como uma daquelas em que os investimentos públicos em infra-estruturas não são agora geradores de crescimento. Provavelmente, nunca o foram no passado.
Se quisermos evitar o desbaratar de recursos que nos vão ser necessários noutras áreas de promoção da competitividade geradora de crescimento, não podemos ignorar as contribuições mais rigorosas e actuais da ciência económica sobre a relação entre o crescimento e o investimento público em infra-estruturas.
(1) Égert, B., T. Kozluk e D. Sutherland, Infrastrucure Investment: Links to Growth and the Role of Public Policies", OECD Economics Department Working Papers, Nº 686, OECD, Paris, 2009. Acesso livre ao documento em: http://www.olis.oecd.org/olis/2009doc.nsf/LinkTo/NT00000E6A/$FILE/JT03261849.PDF
Director do ISG -Instituto Superior de Gestão
majesus@isg.pt
Coluna à terça-feira
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