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A bossa nova a favor da liberdade

Aterrei no Galeão, em 31 de Março de 1964, com passaporte para o samba, e entrou-me pela minha juventude um golpe de Estado. Tenho a paixão do Brasil, e descobri (continuo a descobrir) a sua literatura através da música. A minha geração dançou nos...

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Aterrei no Galeão, em 31 de Março de 1964, com passaporte para o samba, e entrou-me pela minha juventude um golpe de Estado. Tenho a paixão do Brasil, e descobri (continuo a descobrir) a sua literatura através da música. A minha geração dançou nos bairros populares ouvindo sambas-canção de Dik Farney, Lúcio Alves e Dalva de Oliveira. Ainda hoje possuo uma considerável colecção dessas canções, aumentadas por todos os "cobras" da Bossa Nova.

Ia como secretário de Raul Solnado e com fundas propensões para ficar no Brasil. Portugal era uma pátria triste, cercada de infortúnio, eu estava desempregado por motivos políticos e as perspectivas que se me avizinhavam eram escuras como breu. O imenso país verde dos meus sonhos aguçara sempre a minha imaginação. Tinha, talvez, como plataforma, a circunstância de muitos amigos meus estarem lá exilados, a maior parte a trabalhar na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Solnado assinara um contrato fabuloso com a TV-Rio e levara-me consigo, sabedor da minha paixão brasileira. Foram seis meses inesquecíveis, sobretudo como aprendizagem de vida, de carácter e de escrita. Nunca mais fui o mesmo.

Afinal, abandonara um país dominado pelo medo e aterrava noutro no qual as liberdades iam ser cortadas pela bota militar. O Brasil, nessa época, dirigido por João Goulart, ainda vivia a atmosfera de Kubitschek: jovem, arrebatado de projectos e de uma outra concepção de democracia. Não esqueçamos de que os Estados Unidos vigiavam e estrangulavam, em rios de sangue, qualquer veleidade progressista na América Latina, tida como seu quintal. Ajudara a pôr termo a regimes democráticos de cariz nacionalista, e colocara no poder (por vezes durante décadas) os mais sanguinários tiranos. É uma dolorosa história, repleta de peripécias que ofusca a incontestável grandeza norte-americana.

Bom. Eu era um jovem lisboeta, fascinado com o que via, e o que via, em Copacabana e em Ipanema, onde vivia, deixava-me pouco atento ao que, na realidade, se passava. Observava, somente a superfície das coisas, quando, na verdade, a violência e a barbárie imperavam. Foi então que assisti à execução de pessoas, à prisão de outras pelos agentes do DOPS (a polícia política), ao mesmo tempo que as embaixadas estrangeiras se enchiam de perseguidos.

Comecei a enviar telegramas para o jornal "República", onde era redactor, narrando o que observava, com emoção e surpresa. Artur Inez, então chefe da Redacção do honrado vespertino, mandou-me um cabograma, ainda em minha posse, redigido nos seguintes termos: "Mude de tom. Nada tem passado na Censura."

Integrei-me em uma manifestação de protesto, com a leviandade da paixão e própria de quem não sabe muito bem o sarilho em que se podia meter. Era o protesto do morro, coisa impressionante, não só contra o golpe de Estado, que depusera um presidente constitucional, João Goulart, mas, também, como confronto com a Marcha dos Cadillacs, havida dias antes, de apoio aos militares. O morro cantava: "Nos quiseram comprar/Não nos vendemos", milhares e milhares de favelados, guardados por negros de capoeira, dispostos a tudo se tudo fosse necessário. A Marcha dos Cadillacs conglomerava os ricos e os grã-finos, que desfilaram em Copacabana gritando slogans a Deus, Pátria e Família, sagradíssima trindade que emerge sempre que a Direita esmaga as veleidades do progresso.

Um dos homens por detrás da insurreição militar era um americano da CIA, Vernon Williams, poliglota e especialista em assuntos daquela natureza. Chegou a ir à televisão, manifestando o entusiasmo pelo golpe, enquanto milhares de brasileiros eram espancados, torturados, assassinados, homiziados. No entanto, a noite carioca não sofria interrupções. Os "inferninhos" estavam cheios, Jorge Bem (hoje Jorge Bem Jor) estreava-se num bar minúsculo, o "Bottle's", onde a bossa-nova se profissionalizara; enquanto outros cantores, como Gilberto Gil e Caetano Veloso se instalavam em Londres, e Vinicius de Moraes preparava os shows que ia apresentar na Europa.

Na convulsão do tempo, Sílvia Telles cantava, na boîte Zum-Zum, de Paulinho Soledade, um espectáculo estruturado pelo seu marido Aloysio de Oliveira. Discorri sobre aqueles acontecimentos para chegar aqui. O "Público" está a editar uma interessante colecção de Bossa Nova. Todos os sábados, até hoje saíram três CD's. António Carlos Jobim, Vinicius de Moraes e Silvinha Telles, que constituem uma excelente introdução à Bossa. Pena é que os textos tivessem sido entregues a Ruy Castro. São prosas menores, desenquadradas da época, extremamente superficiais. Porém, como não estamos aqui para ler o Ruy Castro, ouçamos esta gente maior, que atribuiu à cultura brasileira uma dimensão superlativa, e à música popular os seus títulos de nobreza.

Silvinha Telles (como Dóris Monteiro, por exemplo) tem sido a grande esquecida da Bossa Nova. Mas o seu talento, a sua extraordinária voz, o seu canto sobrelevam, amiúde, a própria Nara Leão. Além do que a Bossa Nova é, também, um acto político (pormenor esquecido pelo Ruy Castro), uma manifestação sublime do povo, um grito de alerta a favor do amor e contra o ódio. Descobrir, ou redescobrir, neste caso Sílvia Telles, é dar o tempo por bem empregado.
A mim proporcionou-me um imenso prazer, ao mesmo tempo que me permitiu equacionar uma época histórica, na qual a música tentava rebater a bota dos coronéis.


b.bastos@netcabo.pt

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