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A actual turbulência financeira: uma interpretação e uma lição para o futuro

Alguns dados recentes indicam que a actual turbulência nos mercados financeiros está a diminuir. O “spread” da Libor e de outros mercados de crédito ainda continua alto, mas já está a descer em direcção a valores mais habituais.

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Por outro lado, o anúncio de percas por parte de grandes bancos (UBS e Citigroup) ocorridas nos mercados hipotecários tem um efeito positivo. O facto de se deixarem de esconder os prejuízos é um factor de confiança e contribuirá fortemente para a absorção da turbulência ainda existente.

Mas os riscos de agravamento da situação não estão ainda completamente afastados. Por outro lado, situações como a actual continuarão a ocorrer no futuro. É portanto útil compreender o que realmente se passou e tirar lições para o futuro. A actual turbulência nos mercados financeiros é um fenómeno típico de mercado e enquadra-se em situações semelhantes que se geraram, desde os anos 80, provocadas pela coexistência de dois factos: a queda da taxa de lucro e a desregulação dos mercados financeiros.

A queda da taxa de lucro (1), pressionada pela redução do crescimento da produtividade – em grande parte devido ao efeito Baumol – e a falta de oportunidades de investimento, levou ao aumento da distribuição de dividendos e outras formas de distribuição de lucros(2). Surgem, assim, largos excessos de capacidade que pressionam as instituições no sentido de uma política de crédito ultra-barato para contrariar a desacelaração do consumo (2).

Na falta de aplicações na indústria, aumentou exponencialmente o dinheiro disponível para aplicações  de risco nos outros sectores.

Com o pano de fundo da queda da taxa de lucro, os bancos centrais conduzem políticas de taxas de juro baixas, entre outras razões, também para manter as taxas de câmbio competitivas e promover o consumo.

A queda da rentabilidade e o crédito abundante e barato arrasta as bolsas para situações em que o price-earnings conhece subidas sustentadas, atingindo valores históricos. O conceito de risco aceitável sofre mutações consideráveis, provocando a queda drástica das diferenças entre as taxas de juro de dívida nos mercados emergentes e a dívida do tesouro americano ( de 10 % para 2,5% entre 2002 e 2005). Por outro lado, para além do referido, os capitais abundantes dirigem-se igualmente para o investimento no imobiliário, levando ao aumento louco dos preços. Nos últimos cinco anos, o valor da propriedade residencial nos países da OCDE mais do que duplicou sendo o aumento equivalente ao PIB combinado daqueles países, dando origem ao que já começa a ser considerarada por alguns a maior bolha da história económica.

É neste contexto de baixa de rentabilidade dos capitais e de intensificação da concorrência que os poderes públicos conduzem a desregulação dos sistemas financeiros e criam o ambiente para a multiplicação das famosas inovações financeiras.

A desregulação do sector financeiro internacional dos anos 80 trouxe de novo as crises financeiras, praticamente inexistentes dos primeiros 25 anos do pós-guerra. Quando o sistema financeiro estava rigidamente regulado, os  bancos centrais controlavam a moeda e os agregados de crédito e as crises financeiras estavam fortemente limitadas.

Perante este tipo de turbulência – de que alguns já se haviam perdido a memória – muitos exigem agora mais regulação financeira como se fosse possível ou desejável voltar para trás (4).

É um erro pensar que uma nova vaga de regulação financeira resolveria os problemas. A menos que se regresse à situação de extrema regulação vivida  entes dos anos 80, o gosto e a capacidade para as inovações financeiras, ganhas nos últimos 20 anos, fará com que os agentes sujeitos à nova regulação encontrem rapidamente criatividade para deslocar os riscos para os agentes não regulados  – e todos os problemas voltarão a renascer a partir daí. Se houver um aperto na regulação de uns agentes, desenvolve-se um processo em cadeia de deslocação do risco através de novas e mais sofisticadas inovações financeiras. Por mais que se queira dourar a pílula, é nisso que consistiram as inovações financeiras dos últimos 20 anos,  com dinheiro a deslocar-se rápida e extensivamente para  novas aplicações não reguladas.

Se não se quiser voltar ao passado, o que seria de todo insensato, haverá que confiar na disciplina do mercado, tendo presente o que isso implica: a falência dos mais imprudentes e menos sagazes, gerando um duro processo de aprendizagem.

Não há soluções perfeitas e esta também não o é. Mais regulação não elimina os problemas  fá-los apenas reaparecer algures.  Mas a solução acima exige algum aperfeiçoamento dos mecanismos de mercado que deverão ser afinados no sentido de reduzir o risco moral gerado actualmente nos mercados financeiros em turbulência. O aperfeiçoamento em questão deve visar os gestores que operam numa estrutura de incentivos que os protegem das consequências de erros graves cometidos. A estrutura de incentivos em vigor, faz recair os riscos e os prejuízos apenas sobre os investidores e salvaguarda os gestores. Estes,  em caso de falha, apenas deixam de receber os bónus de sucesso, deixando, no caso de insucesso e de falência, os custos a cargo dos investidores. Se os gestores perderem os empregos e não apenas as bonificações quando arrastam as perdas dos clientes muita da instabilidade associada ao mercado seria grandemente minorada.

(1) Como exemplo multiplicável, pode indicar--se que a taxa de lucro no sector privado, no caso da Alemanha, tem registado no pós-guerra a seguinte evolução em queda:

Anos %
1949-1959 27
1960-1969 18
1970-1979 13
1980-1989 12
1990-2000 11

(2) A título de exemplo, que se poderia repetir para outros países, nos EUA a parte, em percentagem, dos dividendos retidos nas empresas tem sofrido a seguinte queda continuada, passando dos 75% nos anos 50 e 60 para os 40% nos últimos 10 anos.

(3) O crescimento da despesa privada na União Europeia a 12 teve a seguinte padrão (taxa média anual de crescimento):

Anos %
1961-1970 5,5
1971-1980 3,6
1981-1990 2,3
1991-2000 2,0

A despesa pública sofre a mesma evolução: 4,3% entre 1961  para 1,8% entre 1991 e 2000.

(4) A tentação é forte. O presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, pela primeira vez cedeu recentemente, no fim de Setembro,  apontando o dedo às empresas de rating de crédito, antevendo a emissão de novas regras de regulação destas empresas. Esta tomada de posição é uma resposta a membros do Parlamento Europeu que haviam por sua vez questionado o papel do BCE na crise.  À insistência na necessidade de maior transparência nos mercados financeiros segue-se sugestão de emissão de regras mais apertadas na regulação de empresas como a Moody’s Corp ou Standard & Poor’s.

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