Opinião
A cidade essencial
Neste início da fase de desconfinamento, é palpável o impacto da pandemia nas cidades e na forma como as habitamos, no uso dos espaços públicos, dos transportes, das áreas de trabalho e habitação e faz antever uma inevitável alteração da configuração e gestão do espaço urbano que irá perdurar para lá da solução clínica do problema.
Não é inédita a influência das epidemias e doenças no desenho das cidades. De Haussman a Cerdá, passando pela Carta de Atenas, objectivos económicos, políticos e sociais moldaram estes e outros planos. Em todos a questão sanitária assumiu um papel central, de forma a solucionar a implacável insalubridade que infestava a cidade medieval e os bairros operários nascidos da Revolução Industrial.
A primeira pandemia da era da globalização expôs muitas fragilidades da cidade contemporânea. Da crescente exiguidade das habitações e modos de habitar precários com nomes apelativos (co-living), aos aeroportos em sub-rendimento que deveriam alimentar os fluxos de pessoas que sustentam uma economia suspensa em bairros mono funcionais. Aviões e transportes públicos, cuja sobrelotação como modelo de negócio vigente se revela inadequado, às infraestruturas hospitalares no limiar das suas capacidades, até ao espaço público por vezes conflituante com as necessidades de afastamento entre pessoas e veículos. Fica claro que a cidade actual, expressão física de uma sacrossanta ideia de eficiência, meramente numérica, atingiu o seu limite.
A resposta imediata às actuais necessidades de distanciamento social e de maior espaço nas habitações aparentam induzir ao regresso em força do modelo assente no automóvel particular, bolha sanitária metálica, que transporta do trabalho para a moradia, numa periferia cada vez mais distante e isolada, devoradora de terreno, cujo isolamento de tudo e de todos dá uma falsa sensação de segurança. No entanto, a insustentabilidade ambiental e económica deste modelo, que vigora desde a segunda metade do séc. XX é óbvia, cuja queda dos preços do seu principal alimento, o petróleo, não é mais do que um último estertor.
O que esta pandemia teve de inédito em tempos de paz, foi a noção de trabalhadores essenciais, vitais para o funcionamento da cidade, não poucas vezes encarnada em pessoas cujo acesso à habitação e aos transportes está condicionado, remetendo-as para as franjas mais frágeis da cidade. A doença sublinhou a nossa interdependência como comunidade, na qual somos todos essenciais.
A cidade essencial não se compadece com segregações económicas e sociais. A cidade a (re)desenhar, por uma questão de princípios ou pragmatismo, deverá ser inclusiva, interclassista, multifuncional, multipolar, de forma a evitar a dependência de movimentos pendulares, permitindo um tecido social e económico variado, de proximidade, que absorva as flutuações do mercado e fomente a coesão social, fundamental para enfrentar as adversidades.
A síntese desta premente transformação será obra de arquitectos e urbanistas, mas a dimensão da tarefa exigirá, como no passado, um pacto social e político de futuro, que extravase os constrangimentos de curto prazo.
Alexandre Ferreira
(Vice-Presidente do Conselho Directivo Regional Norte da Ordem dos Arquitectos)