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Ensino superior: o fim da última aldeia gaulesa

Os anos que passamos na universidade são dos melhores anos da nossa vida e dificilmente o seriam se fossem passados em frente a um monitor de computador. A vivência dos campus universitários e as aulas presenciais permanecerão âncoras críticas no serviço de ensino superior.

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Como consumidores, estamos há já muitos anos habituados a usufruir de serviços chamados de omnicanal, que combinam canais digitais com canais físicos. Por exemplo, o e-banking surgiu há quase 20 anos, dando a oportunidade aos clientes de usufruírem de serviços bancários numa agência física ou através da internet. Até o Estado, apesar da sua conhecida inércia, se apressou a possibilitar que os contribuintes pudessem cumprir as suas obrigações fiscais sem esforço (exceto na carteira) através da internet, em complemento às repartições de finanças e lojas de cidadão.

Se recuarmos dez meses no tempo, encontramos um setor de serviços que, tal como a aldeia de Astérix, resistia a estes ventos de mudança, mantendo o seu reduto quase 100% presencial: o setor do ensino em geral, e do ensino superior em particular. Pese embora a oferta de cursos online por reputadas universidades tenha aumentado na última década, este tem sido visto como um segmento de nicho, e o modelo de ensino não se alterou significativamente. A pandemia derrubou este reduto com estrondo, incluindo em Portugal. Teriam há dez meses as universidades algum tipo de poção mágica que, entretanto, perdeu qualidades? O que explica este fenómeno?

A investigação que tem sido feita pelas próprias universidades na área da gestão dos serviços permite compreender o que se está a passar. Nos serviços omnicanal o racional é o de oferecer escolha ao cliente para que este possa combinar o que de bom tem cada canal para suprir as suas necessidades específicas em cada momento. Diferentes canais têm diferentes forças. Por exemplo, a internet é conveniente (disponível 24/7 em nossas casas), enquanto as instalações físicas permitem socialização e comunicação mais rica com os prestadores de serviço. Esta investigação também mostrou que os modelos vencedores são geralmente híbridos e não puramente digitais ou puramente físicos.

Deste modo, faz todo o sentido que as universidades explorem o racional omnicanal (ou, na terminologia do ensino, blended) para melhor servirem os seus estudantes. Por exemplo, uma aula expositiva com fluxo de informação maioritariamente unidirecional professor-estudante pode ser eficazmente entregue pela internet em modelo assíncrono, tal como hoje vemos filmes em casa pela Netflix, sem nos deslocarmos a uma sala de cinema. Ao contrário, quando o professor necessita de transmitir conhecimento tácito aos estudantes e desenvolver neles competências de raciocínio crítico ou comportamentais, a interação em sala de aula é muito importante.

Porque é que muitas universidades demoraram tanto tempo a considerar estes novos modelos e foi preciso a pressão pandémica para inovarem? A investigação também fornece possíveis explicações. O ensino é um serviço dito profissional. Estes serviços são tipicamente geridos por profissionais qualificados com grande autonomia (médicos, advogados, professores), sujeitos a códigos deontológicos e regulação. Por exemplo, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos estipula que, quando o médico usa canais digitais e não observa presencialmente o doente deve avaliar cuidadosamente a informação recebida, só podendo tomar decisões médicas se a qualidade da informação recebida for suficiente e relevante. No ensino superior, as entidades de acreditação criam rigidez e dificultam a inovação. Daqui resulta uma maior dificuldade na adoção de canais digitais na prestação de serviço. Adicionalmente, no caso das universidades, o serviço não se esgota na vertente de formação curricular dos estudantes. Há também uma vertente muito importante de socialização dos estudantes que ocorre no campus, incluindo o contacto com pessoas de diferentes culturas e perfis socioeconómicos, criação de novas amizades e atividades extracurriculares (associações de estudantes, clubes, desportos).

Neste contexto, as universidades viviam numa bolha protegida. A pandemia rebentou esta bolha ao mostrar, por experiência forçada, quer aos professores quer aos estudantes, as potencialidades do modelo omnicanal, operando uma mudança de atitude que dificilmente será revertida. As entidades de acreditação devem reconhecer esta realidade, revendo conceitos antiquados como a distinção artificial entre o ensino remoto e presencial e a definição do que consiste contacto com os estudantes.

Dito isto, os anos que passamos na universidade são dos melhores anos da nossa vida e dificilmente o seriam se fossem passados em frente a um monitor de computador. A vivência dos campus universitários e as aulas presenciais permanecerão âncoras críticas no serviço de ensino superior.

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