Opinião
Sustentar o milagre na China
A recente instabilidade económica e política das democracias ocidentais, como a crise financeira, a eleição de Trump ou a disfuncionalidade do Brexit, convenceram Xi Jìnpíng de que o sistema chinês é superior e deve ser fortalecido e protegido de influências externas.
Nos últimos dois meses, a população de Hong Kong tem saído à rua, em grandes números, protestando contra o Governo local. Se, no princípio, o objeto da revolta era a legislação que permitiria a extradição de detidos para a China, hoje a revolta é mais geral e é contra um Governo (nomeado pela China) que os manifestantes consideram não representar os seus interesses. Este é um momento importante para se refletir sobre o papel da China no mundo e para a sustentabilidade do seu modelo.
A China é hoje uma superpotência. Por um lado, pela sua dimensão, ela constitui um contraste à influência dos Estados Unidos da América. A afirmação internacional levada a cabo pelo Presidente Xi Jìnpíng, com iniciativas como o One Belt, One Road ou o Banco Asiático de Infraestrutura e Investimento, rompe com a tradição de Deng Xiaoping de uma China discreta e querendo passar desapercebida no seio das superpotências.
Por outro, pelo seu sucesso, a China oferece um modelo económico alternativo. O modelo liberal sustentou o desenvolvimento do Ocidente na legitimidade democrática e na economia de mercado. Este modelo tem sido exportado através de programas de ajustamento do FMI e do Banco Mundial com princípios simples: privatizar, desregular e equilibrar as contas - o resto o mercado assegura. Apesar da vasta literatura que sustenta empiricamente as suas virtudes, o modelo liberal tem uma raiz ideológica forte.
Em contrapartida, o modelo chinês, inspirado na experiência de Singapura e aperfeiçoado pelo partido comunista, sustenta-se em dois pilares muito mais pragmáticos (i.e. menos ideológicos): a legitimidade da autocracia pelos resultados (o estado/partido é legítimo se entregar crescimento económico e bem-estar aos cidadãos) e o pragmatismo estratégico (a virtude do Estado ou do mercado é uma questão prática e de contexto - nas palavras de Deng Xiaoping: "O gato pode ser vermelho ou cinzento, desde que apanhe ratos").
Nas primeiras décadas de desenvolvimento, o modelo chinês era visto pelo regime e pelos observadores internacionais como transitório. Eventualmente, assistiríamos a uma abertura para um regime liberal de mercado, que se instalaria à medida que o nível de vida e a maturidade sociopolítica da nação se fortalecessem. Chineses em Hong Kong e em Taiwan, habituados a viver em regimes liberais, aguardavam com paciência esse momento para se juntarem à grande nação. No entanto, a recente instabilidade económica e política das democracias ocidentais, como a crise financeira, a eleição de Trump ou a disfuncionalidade do Brexit, convenceram Xi Jìnpíng de que o sistema chinês é superior e deve ser fortalecido e protegido de influências externas. As vantagens do modelo convenceram também líderes como Paul Kagame, do Ruanda, que declararam já a sua vontade de emulá-lo nos seus países. Estou seguro de que assistiremos, nos próximos anos, a um esforço académico de teorização do modelo e da sua aplicabilidade nas regiões menos desenvolvidas do planeta e a uma competição entre dois modelos político-económicos rivais.
A questão que se levanta é se o regime chinês será sustentável politicamente, sem uma abertura democrática e económica a prazo, como estava previsto. Com um potencial de crescimento económico menor (como é expectável depois de décadas de convergência para os países mais ricos), uma instabilidade financeira preocupante (depois dos esforços do Governo para inflacionar a economia e evitar uma desaceleração) e uma guerra económica crescente com os Estados Unidos da América (apostados em conter a emergência geoestratégica da China através da pressão económica), o crescimento económico e a empregabilidade abrandarão para níveis que porão em causa os objetivos oficiais, como já reconheceram as autoridades. Assim, o regime terá, a prazo, dificuldade em legitimar-se apenas pelo sucesso económico.
Para alguns observadores, a questão é de ordem pública e a eficácia do controlo de informação e de segurança interna asseguram a sustentabilidade do regime. Ora, a China é um país grande, com ligações ao resto do mundo no qual os chineses passeiam, estudam e vivem, e o país detém uma longa história na qual, sem legitimidade, não há sustentabilidade política, em particular localmente. Para outros, a questão da sustentabilidade do regime é sobretudo cultural: os ensinamentos de Confúcio e o receio da instabilidade que historicamente tem prejudicado a China levarão a população a aceitar as condicionantes à sua liberdade. É neste contexto que os acontecimentos em Hong Kong são significativos. Eles demonstram, de forma clara, que elementos como progresso económico, liberdade e justiça são expectativas de todos os seres humanos. A vontade de os sacrificar é sempre transitória e dá-se apenas em situações de emergência como a pobreza ou a insegurança. A continuidade da legitimidade política perante a elite e o povo no novo contexto económico e internacional é fundamental para proteger o milagre económico dos últimos 40 anos durante os próximos decénios.
Professor na Nova SBE