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01 de Abril de 2019 às 20:25

Estereótipos "on ice" e "um bom coração"

Mesmo que recorrendo quase sempre a estereótipos, os contos infantis, na sua maior parte, procuram inculcar uma certa ideia de "bem" e educar pelo exemplo.

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Dei por mim a assistir ao "Disney on Ice" e a responder a "porquês" de crianças sobre o que víamos. Nem sempre é fácil (às vezes nada) enfrentar e satisfazer as suas perguntas, mas neste caso não foi por aí além. Por um lado, porque os contos infantis são produzidos (às vezes de uma forma óbvia) por adultos, e por isso a cosmovisão que espelham é a sua, logo não (me) é muito difícil perceber nem explicar o que querem dizer. Já se as crianças percebem tudo (por exemplo, e entre outros, os dramas e as felicidades do amor ou do desejo, mesmo quando sublimado, dos contos de fadas para uma criança de seis anos ...?), disso não tenho a certeza, mas "são outros quinhentos". Por outro lado, porque, na maior parte das vezes, os contos infantis são simples (simplistas aqui e ali) ou lineares, e tudo se reduz a poucos conceitos e linhas discursivas (pelo menos no texto, já que no subtexto a conversa é outra, mais complexa).

 

O que eu não expliquei foi que muito daquilo é estereotipado, e reflete um mundo (assim moldando as almas, como diria Platão em "A República", ou inculcando uma certa normatividade, como diriam outros autores mais modernos) em que as categorias são claras e muito marcadas - quanto ao género, à raça, à sexualidade, ao poder, aos papéis e posições sociais, ao bem e ao mal, "et cetera". Sobre o gelo, príncipes e princesas, pares amorosos, famílias, aventuras, governantes e governados, ricos e pobres, bonitos e feios, "inter alia", desfilam quase sempre de uma mesma forma, numa certa arrumação e ordenação, onde tudo é de sentido único, simples e predefinido, como se as cores da vida fossem ou pudessem ser apenas aquelas. É, aliás, por isso que os contos infantis têm merecido, e bem, tantas críticas e tanta tentativa de desconstrução, sobretudo para quem se tem preocupado em semear a reflexão, o combate pela aceitação da diferença (ou melhor, pelo elogio em certas coisas das virtudes da indiferença ou da irrelevância), a problematização e, sobretudo, o alerta sobre os modos mais ou menos subtis de construir ou impor mundividências. Desse ponto de vista, os contos infantis têm defeitos e perigos - como, aliás, quase tudo o que é obra de adultos.

 

Mas não é menos verdade que também têm, pelo menos, duas enormes virtudes. Uma, estimulam o sonho, a fantasia e a criatividade, e essa é uma coisa tão boa nesta vida que quase nos faz perdoar, mesmo que a razão se tente sobrepor à emoção, aqueles defeitos e perigos. Outra, e muito importante: mesmo que recorrendo quase sempre a estereótipos, os contos infantis, na sua maior parte, procuram inculcar uma certa ideia de "bem" e educar pelo exemplo. E isso, melhor ou pior, mais ou menos preconceito, maior ou menor normatividade imposta - em doses tão moderadas, sedutoras e sub-reptícias quanto eficazes - conduz quase sempre a um efeito que a minha avó objetava à minha mãe quando esta manifestava, nos anos setenta da minha infância, preocupação pelo facto de eu gostar tanto e chorar muito com a sofrida vida da personagem "Marco", que errava pelo mundo em busca da mãe. Dizia a minha avó, do alto da sua sabedoria simples, sabendo eleger prioridades: "Deixa-o ver filha, e que chore, que lhe faz um bom coração." Se os contos infantis semearem raízes de sonho e de "bom coração", podemos tolerar o resto. Tudo tem um preço, mesmo que seja uma certa tábua do que é o "bem" e do que é o "mal". Ponto é que logo na infância, e pela vida fora, outros instrumentos nos sejam dados para poder ver e compreender as cores e os matizes. E são tantos.

 

Advogado

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