Opinião
Escobar, Moisés e Octávio
Estranha associação - poderão pensar ao olhar para o título. Talvez, mas só para os olhos de uma tentada objetividade, passando a estranheza logo que entra em cena a subjetividade de quem a faz, pois se a fez é porque ela para si tem sentido.
Todas as associações de ideias têm um autor, um motivo, um contexto e um momento, e é isso que as explica. Aqui, sou eu o autor, o motivo é o poder, o contexto é o das minhas observações e vivências (mais ou menos próximas) e o momento é o de uma pausa entre afazeres profissionais, na qual a leitura da novela de Thomas Mann "A Lei", em que recria parte da vida de Moisés, preenche horas de lazer junto com episódios da série televisiva "Narcos", centrada em Pablo Escobar. Pelo meio - artes misteriosas da associação de ideias - recordo aspetos da biografia do imperador romano Octávio, lida há muito, e também o que, ainda há mais tempo, escrevi sobre os dois principais mecanismos do poder, que então disse serem (e hoje diria o mesmo) a ameaça e a crença.
Sem ambas, ameaça e crença, o poder não se conquista, não se exerce e, sobretudo, não dura. Em cada momento e lugar, uma e outra assumem formas diferentes, podendo a ameaça ser a das armas, a da intervenção da transcendência, a da aplicação de desvantagens ou da recusa de vantagens ou a da ausência de recompensas, a da negação de bens materiais (essenciais ou voluptuários) ou a simples administração do medo difuso; enquanto a crença - quase em reverso - pode estar ligada a um saber superior, a uma força poderosa e/ou a uma capacidade de dar, administrar e proporcionar aquilo que quem se submete ao poder precisa ou quer e tem medo de não alcançar ou de perder. Medo, aliás, é um elemento-chave em qualquer fenómeno de poder - e talvez seja o traço mais forte e constante do humano. Sem medo não há humanidade, e sem medo não há poder.
Mas ambos, ameaça e crença, são necessários, sobretudo para que o poder se exerça e dure. E em equilíbrio. Escobar começa a cair quando acentua a ameaça, ao mesmo tempo que relaxa os factores de crença. Excesso de ameaça e défice de crença costumam dar um poder breve, embora seja também certo que a crença só por si pode ser insuficiente como a vara de Araão. Moisés, que no Êxodo vai passando de bestial a besta, é incensado quando tudo corre bem e colocado em causa quando as coisas são adversas, e vive a tensão permanente de encontrar soluções para o contentamento do seu povo, ao mesmo tempo que conta com a ameaça da sua ira, com o braço armado de Josué e Caleb e, sobretudo, com a face castigadora do seu Deus - um Deus tão colérico e vingador quanto amoroso, dador e misericordioso (o que aliás explica a perenidade do Seu poder). E Octávio, sábio nestas e noutras coisas, administra ambas com mestria, em equilíbrio, e dura quatro décadas à frente do império.
E junta-lhe outro elemento, uma terceira graça do poder, tão difícil quanto eficaz: a aparência. Octávio, o mais poderoso dos imperadores, não parece sê-lo, e nessa aparência reside a sua maior força. Octávio, o subtil. O oposto de Zaqueu, homem pequeno que precisa de se empoleirar na árvore, e que Jesus convida a descer da árvore, em exercício de humildade, anulando-o. Octávio, o que só se mostra o necessário, o que é sem parecer ser. Octávio o que pouco grita ou esbraceja, o que faz. O paciente, o constante. O que sabe que a aparência é a mais poderosa face da realidade e que o objeto só existe nos olhos dos sujeitos. Octávio, o que está, o que é, o que dura.
Advogado
Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico