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24 de Março de 2016 às 00:01

A essência e os procedimentos

Como se sabe, este tema da espanholização de setores estratégicos já foi tratado e debatido com profundidade em momentos vários da nossa vida coletiva das últimas décadas.

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Um desses momentos foi em 2004, no ano em que assumi as funções de primeiro-ministro a propósito de uma disputa, que vinha dantes do tempo do meu Governo, pelas participações na Galp Energia. Foi uma luta muito intensa e que envolvia uma restruturação do setor energético, a partir de um trabalho desenvolvido por uma comissão liderada por João Talone. Com essa restruturação pretendia-se que, por exemplo, todo o setor do gás ficasse sob a mesma responsabilidade, no caso a EDP.

 

Concorreram a essa venda de capital da Galp Energia vários consórcios, entre eles, um liderado pelo engenheiro Ferreira de Oliveira que já tinha sido, e depois veio a ser até há bem pouco tempo, presidente da empresa. Esse consórcio tido como oriundo do norte integrava também o BPI, na altura tinha como presidente do conselho de administração, Artur Santos Silva, que hoje é presidente da Gulbenkian. Ora, o grupo La Caixa era já acionista desse banco e alegavam os opositores desse consórcio, no caso de ele ganhar, que um setor tão importante como o dessa empresa energética passaria a ficar sob influência e controlo de capitais espanhóis.

 

Na altura em que se desenvolveu essa disputa, era administrador executivo da Galp António Mexia, e presidente da mesma o engenheiro Joaquim Ferreira do Amaral. António Mexia teve nessa empresa também uma política muito marcante, como tem hoje na EDP. Desenhou uma ofensiva em solo espanhol no sentido de ficar com a rede de combustíveis da Shell no país vizinho, na sequência da retirada dessa companhia petrolífera da Península Ibérica. Pelo meio, António Mexia veio a ser convidado por mim para a pasta das Obras, Transportes e Comunicações. O processo foi muito duro, a Petrocer acabou por ganhar, "ex aequo" com o Grupo José Manuel de Mello, em terceiro lugar ficou um consórcio liderado pela Carlyle e do qual fazia parte o Grupo Espírito Santo.

 

Dizia-se já ao tempo que era preciso combater o avanço "castelhano" e que a melhor maneira de o fazer, no entender dos membros do consórcio do Carlyle, era escolher esse grupo com uma presença muito significativa de capitais nacionais. Tudo era, no entanto, relativo, mas de facto neste consórcio não havia uma influência forte de capitais espanhóis. Estamos a falar de há doze anos e as lutas foram tão intensas que deixaram marcas, algumas delas compreensíveis, entre os protagonistas dessa disputa. Só que esse projeto de restruturação do setor energético tantas energias consumiu que acabou por ser chumbado em Bruxelas no final desse ano, tendo tudo voltado praticamente à estaca zero. Ferreira de Oliveira acabou por ficar na presidência da Galp, mas o pressuposto da reorganização do setor pelo qual se batia acabou por não ir por diante. Já há época eram muitas as movimentações no sentido de garantir posições por parte dos diversos consórcios interessados no processo.

 

Na altura, era pois esse o setor que estava em causa. Noutras épocas foi o setor dos transportes e ainda recentemente com a privatização da TAP essa questão de Espanha esteve sempre em cima da mesa. Aliás, falando-se sempre na importância da existência de um "hub" no aeroporto de Lisboa para garantir autonomia ao "hub" de Madrid. Mas também no final dos anos 1990 e no início do século XX foi no setor das telecomunicações, nomeadamente com a privatização da PT e, agora recentemente, com a Telefonica. Agora voltou a ser questão com a reorganização do setor financeiro, ditada principalmente pelo colapso do BES e do grupo a que pertencia. Já nos anos 1990, a questão também se pôs, quando o banco Totta foi vendido e o Santander conquistou, por essa via, a importante posição que atualmente detém no sistema bancário português.

 

Está em cima da mesa, para além da questão da "espanholização", a exigência da autonomia e da independência de centros fundamentais de decisão em Portugal. Podem existir países independentes sem nenhum centro de decisão estratégica nestes setores controlado por capitais ou decisores nacionais? Em teoria sim, mas são independências muito relativas. Porque, sendo certo que as soberanias são sempre limitadas, e no mundo de hoje cada vez mais, mas tudo tem limites.

 

Por isso mesmo, é muito importante que a questão dos procedimentos não desvie a questão do essencial e o essencial é o acerto nas decisões que sejam tomadas e na intensidade das negociações que sejam levadas por diante com o BCE e as autoridades de Bruxelas sobre a nova organização do sistema financeiro da União Europeia. Independentemente da posição de cada um sobre o nível, o modo e a substância que as intervenções dos governos podem ter nesses processos, o importante é que todos e cada um percebam que o que está em causa não é o seu Governo ou o Governo a que se opõem, mas sim o Estado a que todos pertencem e a Nação que ele representa.

 

Advogado

 

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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