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Nicolau do Vale Pais 28 de Agosto de 2015 às 10:20

McNamara não vai à pesca: o problema político português visto a partir da Nazaré

O drama do sector primário e da sustentabilidade económica deste país pequeno e periférico está estampado no contraste de notoriedade entre surf e sardinhas.

Da Nazaré chegam-nos narrativas recentes que podem muito bem ser lidas como exemplificativas do que tem sido a luta contra a crise - ou as crises - do país. Não é de surpreender que se possa pensar e extrapolar "Portugal" a partir da Nazaré: das sete saias a Dom Fuas Roupinho, da negra agonia pelo regresso dos que saíram para a faina até à sazonalidade colorida da festa estival, a Nazaré - ou melhor, a forma como ela se inscreve na nossa memória colectiva - é paradigmática da nossa "forma de ser". Ironicamente, ou talvez não, até no facto de as boas intenções de todos - das quais não duvido - não chegarem para resolver com eficácia os problemas, a Nazaré nos serve de exemplo. O problema político português pode ser, em boa parte, visto a partir dali:

- Já todos sabemos da nova marca que o surfista americano nascido no Hawai, Garrett McNamara, criou na Nazaré. O projecto tem os seus patrocinadores, e conta (ou contou no arranque, pelo menos) com o investimento do Estado através do Turismo de Portugal. Trata-se de um aproveitamento inteligente de uma característica geológica única daquela região, o chamado "canhão da Nazaré". Esse "canhão" é um vale rochoso submerso a profundidades que chegam aos 5000 metros e que se estende por mais de 200 quilómetros - a sua peculiar morfologia como que "afunila" as massas de água, fazendo as ondas subirem a mais de 30 metros. As imagens do recorde do mundo que McNamara bateu na Nazaré correram os media como autênticas "silver bullets"- são imagens incríveis de beleza e espectáculo, que, como em qualquer boa metáfora, nos fazem interrogar acerca da escala das coisas e da nossa própria insignificância perante a força da Natureza. Pessoalmente, estou convencido que o facto de serem feitas ali, na Nazaré, que tantos filhos perdeu para o mar, lhes dá um contorno narrativo muito específico. Tudo isto sabemos, e celebramos.

- O que nem todos sabemos é que, na semana passada, num gesto político, o presidente da câmara da Nazaré - Walter Chicharro - se dirigiu a Lisboa para entregar, no Ministério da Agricultura e Mar, tutelado por Assunção Cristas, o "último" cabaz de sardinhas pescado na Nazaré. E aqui, uma pausa para pensar: pensar desde logo por que é que as notícias do canhão encheram todos os media dias a fio, e coisas desta significância são relegadas para segundo plano por quem tem responsabilidades editoriais - nomeadamente ao nível da grande divulgação, isto é, a omnipresente e omnipotente televisão. O presidente da câmara fez-se acompanhar pelo presidente da Associação de Pescadores e Armadores da Nazaré, Joaquim Zarro; foram a Lisboa protestar veementemente contra o estrangulamento violento da quota de pesca da sardinha destinada a Portugal (e não só à Nazaré), e contra a miséria anunciada para milhares de famílias de pescadores no próximo ano, caso esta decisão, tomada em sede europeia, venha a ser consentida pelo Governo Português.

O drama do sector primário e da sustentabilidade económica deste país pequeno e periférico está estampado no contraste de notoriedade entre surf e sardinhas. O deslumbramento permanente, o mediatismo pouco criterioso e a ausência de um espírito crítico por parte dos agentes que fazem a democracia - com os media à cabeça - é bem visível nesta parte da história da Nazaré. A vacuidade política - Portuguesa e Europeia - está ali plasmada, naquele desperdício: haverá subsídios para estas famílias, com certeza esmolas quando comparados com o que está em jogo na economia do mar. Depois, claro, continua o problema insanável da dívida, que é brutal naquela autarquia, ascendendo a perto dos 41 milhões de euros, ou seja, perto de 2.800 euros por habitante (números de 2014).

É evidente que um sistema democrático que se deixa passivamente reger por critérios espúrios de popularidade terá sempre dificuldade em encontrar as compatibilidades essenciais para o verdadeiro desenvolvimento, incluindo a compatibilidade entre turistas e autóctones, consumidores e produtores, no sentido lato dos termos. E esta é uma questão de Estado, não é só da Nazaré. É tempo de pensarmos no que é permanente como algo a montante do que é efémero: não é essa, precisamente, a beleza das ondas?

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