Opinião
"It's showtime": de futebol sabem os americanos
Enquanto nós nos habilitamos ao descrédito público como quem brinca com o fogo, na América é um tirinho entre detenção, acusação e julgamento. Lembram-se, com certeza, de Bernie Madoff.
Talvez peque apenas por tardia, talvez seja para muita gente tão natural como ter sede: o caso da detenção de sete figurões, de um total de catorze acusados, do alto dirigismo do futebol mundial, tem muito que se lhe diga. Este é um daqueles momentos em que o óbvio não deixa de ser interessante, a começar pelo facto de cerca de metade dos detidos estarem ligados a cargos de "promoção" do futebol junto de "entidades governamentais internacionais". Isto é como quem diz, mesmo que apenas em surdina, o branqueamento de gastos públicos milionários em nome do "sucesso económico dos eventos", também conhecido, na gíria da desqualificação generalizada, por "o retorno".
As FIFA deste mundo - é preciso que se diga, para não cairmos na complacência - dependem de culturas onde "o retorno" é visto pelos contribuintes como tudo menos aquilo que de facto é: um ventilador artificial do qual os responsáveis públicos se socorrem quando não sabem mais o que fazer com a verdadeira e real economia. Depois vêm os estudos que ninguém questiona nem vê, senão citados pelos seus valores "milionários", nas parangonas da tal "promoção" - se dão milhões, eles não caíram de certeza nos bolsos dos comuns mortais que, através dos seus impostos, neles investiram. A propaganda existe, precisamente, para deslocalizar causas e efeitos.
O aparentemente inusitado facto de a ordem de detenção ter sido dada do lado de lá do Atlântico foi bem explicado por um pivô britânico da CNN: "A lei foi quebrada em solo americano e os crimes de que são acusados os altos dirigentes terão sido cometidos usando o sistema bancário americano". E acrescentava: "Aqui, quando o colarinho é de crime branco, trancam a porta e deitam fora a chave". Enquanto nós nos habilitamos ao descrédito público como quem brinca com o fogo, na América é um tirinho entre detenção, acusação e julgamento. Lembram-se, com certeza, de Bernie Madoff.
Claro que só um ingénuo pensaria que esta criminalidade - que se supõe que possa ter movimentado qualquer coisa como 140 milhões de dólares ao longo de uns escandalosos 24 anos - deixaria de passar pelo poder político e pela banca. No epicentro destes casos está, e estará sempre, a suprema das hipocrisias, que é a do legislador. É ele quem molda a Lei q.b., para que mesmo o obsceno possa ser legal. Neste caso, como noutros, existe também um homem-charneira: Chuck Blazer. Este americano foi, durante anos, secretário-geral da Confederação de Futebol da América do Norte, Central e das Caraíbas; através deste organismo, fez circular influências e dinheiro em montantes inimagináveis, fomentando promiscuidade e sucesso fácil. Doente, arrependeu-se e, na sequência de uma detenção por fraude fiscal em 2011, terá começado a falar em troca de penas mais ligeiras. E foi assim que, na terra do "baseball", começou a limpeza do "soccer".
Com a chegada do Tio Sam a este submundo, a expressão "planeta futebol" ganha agora outra maturidade. Quem sabe o desporto-rei lava a cara, e possamos, dentro de algum tempo, deixar de ter a consciência pesada por causa de algo tão simples quanto gostar de futebol.
N.R.: Este texto foi escrito nas horas subsequentes à notícia que nos apanhou a todos de surpresa; os factos nele contidos são uma súmula da minha consulta a várias agências noticiosas internacionais; peço, desde já, as minhas desculpas se algum desses factos se encontrar desactualizado à data da publicação.