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01 de Novembro de 2013 às 11:24

A Televisão não é Lei (nem sequer Sheriff)

Eu, no futebol, gosto de golos. Mesmo. E não tenho qualquer preconceito social em relação "à bola"; não me sinto superior quando a ignoro, ou inferior quando gozo os jogos que me interessam.

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Eu, no futebol, gosto de golos. Mesmo. E não tenho qualquer preconceito social em relação "à bola"; não me sinto superior quando a ignoro, ou inferior quando gozo os jogos que me interessam. Pelo contrário, entendo que, no melhor e no pior, o futebol é um reflexo da nossa sociedade e considero sinal de inteligência mínima a sua não rejeição; mais ou menos pela mesma razão que tento não rejeitar (nem idolatrar, já agora), aquilo que não percebo.


Foi com os pés assentes na terra que identifiquei no fenómeno mediático (esse sim, doentio) à volta do jogo uma particularidade que serve bem de caso de estudo para o desvario em que andamos, com a nossa mania de fundir factos com opinião, criando a pérfida ilusão de que o aumento de horas de discussão e extremar de posições contribui para a qualificação das nossas posições. Falso. Em boa verdade, os aspectos de apreciação da lei do fora-de-jogo - e, sobretudo, da sua aplicação - deviam ser ensinados nas Licenciaturas em Ciência Política e de Comunicação, como um exemplo "text book" de como é possível engajar duas ou mais facções à volta de um debate inexistente. O que há, isso sim, é um conflito instigado, em que ambas as partes se coçam sem tirarem, de todo, a nossa comichão. Vejamos.


A lei do fora-de-jogo é uma lei com consequências tácticas fantásticas: ao obrigar a que o jogador a quem o passe é endossado tenha de ter, no momento do dito passe, entre si próprio e a linha de golo da baliza adversária, pelo menos dois jogadores (regra geral, isto implica um jogador de campo e o guarda-redes), ela impede que os jogadores "acampem" no meio campo adversário e obriga tanto defesas como atacantes a manobras colectivas de posicionamento que são hoje, realmente, uma das essências do espectáculo. Sucede que, como em tudo na vida, que há um imenso fosso entre o "espírito da lei" e (pragmaticamente falando), a sua "aplicação". Com efeito, a velocidade do jogo e as movimentações rápidas impossibilitam ao árbitro a percepção da situação - entra em jogo, então, o fiscal de linha, incumbido de se posicionar, regra geral, em linha com o último defesa, posição privilegiada para observar a colocação do atacante. A FIFA, ela própria, reconhece o problema e tem uma recomendação clara como água sobre a atitu

de a adoptar em caso de dúvida por parte dos juízes: beneficiar o ataque, isto é, nada assinalar. É isto que se pede, preto-no-branco: que a aplicação da lei reconheça a sua própria difícil exequibilidade.


Agora liguemos a televisão. Eis-nos perante um painel que debate até à exaustão o erro-ou-não-erro do árbitro. A tecnologia - indisponível para os juízes - brilha no LCD e surge uma linha amarela fictícia junto ao tal penúltimo homem, com a qual tem de estar alinhado o atacante, para que esteja "em jogo". Fala-se, gesticula-se, o "super slow motion" em HD hiperboliza: para uns errou, para outros não. E segue para o jornal do dia seguinte, com direito a "photo stills" que congelam rigorosamente o momento do passe. Andamos nisto há anos e, em 90% dos casos, é "bullshit" pura. Purinha. Um juiz aplica a lei, e o código que rege a aplicação da lei (o código do International Board da FIFA) é claro: nada a assinalar quando há dúvida razoável, beneficiar o ataque, o espectáculo. Ora, as discussões a que assistimos são entretenimento e não informação; porque se não houvesse "dúvida", também nada haveria que discutir e aquilo que tinha de ser dito era isto: o árbitro ajuizou bem ao não assinalar. Nós aqui - mesmo com tecnologia - não conseguimos consensos, portanto, há que, de acordo com as recomendações superiores, nada assinalar. E nada a discutir. Um juiz não faz a lei, senão não era um juiz, era um "Sheriff".


Cada um tira para si as ilações que este erro, que se propaga até à distorção total da análise dos factos, possa fornecer. Em boa verdade, este estado de coisas já nem é mau juízo, é mesmo desvio do propósito fundamental da análise do trabalho de um árbitro, ou de um responsável. Por mim, uma extrapolação: se continuarmos a deixar esta fonte de equívocos, este "modelo", jorrar como forma única de matar a nossa sede, então é melhor estarmos preparados para sermos governados por "Sheriffs" e para estarmos, de facto, cada vez mais perto faroeste. A televisão não é lei, nem merece ser. E estou farto de ver "informação" a institucionalizar como útil aquilo que é, na melhor das hipóteses, redundante.

 

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