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14 de Novembro de 2014 às 10:19

1968: Zátopek salta o Muro

Parte do poder político europeu não soube aproveitar a oportunidade única que foi a queda do Muro.

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"Deixai-nos viver de maneira a que, quando formos a enterrar, possamos arrancar lágrimas até ao coveiro."
Mark Twain


Há regimes que se auto-proclamam de tal maneira "brilhantes" que acham que os seus cidadãos não têm direito a votar - costumo lembrar isto a todos os bons amigos com quem tenho conversas sobre o binómio capitalismo vs. comunismo. Porque fogem os cubanos? Melhor, do que fogem? Porque se atiraram ao arame farpado centenas de "alemães de Leste"? A tirania não tem cor, é cinzenta.


Serão menos os alemães que acham que os seus políticos já não estão ao serviço de causa alguma do que os portugueses que assim também pensam? Duvido. Duvido tanto quanto tenho a certeza de que Mikhail Gorbachev está factualmente certo ao denunciar, com coragem inédita, no seu discurso de domingo passado, que grande parte do poder político europeu não soube - ou pior, não quis - aproveitar a oportunidade única que foi a queda do Muro, há 25 anos.


Passei parte dessa tarde a ver, na televisão alemã ZDF, os documentários criteriosamente escolhidos pela direcção de programação daquela estação. Por mera coincidência - ou talvez não, já que ao escolher um "bestseller" para ler nessa noite, tentava, justamente, evadir-me da angústia entretanto criada -, cruzei-me com Emil Zátopek, o atleta checo, desaparecido no ano 2000. Lia "Born to Run", de Christopher McDougall, um ficção documental imperdível para todos os que acham que há de facto algo de primordial na prática da corrida. É uma boa obra para ingénuos que, como eu, ainda esperam vir a descobrir qualquer coisa de filológico, ao martelar mais e mais quilómetros nas suas pernas e espíritos. Numa fase do livro em que McDougall assinalava uma curiosa estatística - não foram os africanos que se tornaram mais rápidos, foram os ocidentais que se tornaram mais lentos, apesar dos seus caríssimos sapatos -, surge a referência ao herói checo. Zátopek era militar de carreira e não tinha propriamente um método que não fosse o de dar mais e mais. Fazia repetições sistemáticas de troços curtos a alta velocidade; partia para a floresta à noite, depois de um dia de duríssimo treino de Infantaria, e fazia uma maratona debaixo de neve, com as botas de tropa calçadas. No seu dia de faxina à caserna, lavava a roupa pisando-a dentro de água gelada, descalço, como se faz com as uvas, para fortalecer os tornozelos e gémeos. Juntava o outro amor da sua vida - a sua mulher - à corrida, e fazia troços de dez quilómetros com ela às costas. O seu feio estilo de "cara-à-banda" nunca gerou consenso, mas isso não o incomodava. Sorria, de careca reluzente, ao dizer "não sou talentoso o suficiente para correr e parecer bonito ao mesmo tempo".


Em 1952, entrou para a História com estouro, nos Jogos Olímpicos de Helsínquia. Como a equipa olímpica Checa era pequena, havia liberdade na inscrição para as provas. Zátopek ganhou os 5000 metros, com recorde olímpico. Depois, foi para os 10.000 metros; e ganhou, com novo recorde. E com os Jogos a chegarem ao fim, inscreveu-se para algo em que nunca tinha sequer competido, a Maratona. Ganhou, com o terceiro recorde olímpico pulverizado em mais de seis minutos.


O trajecto de desportista de Zátopek é indissociável da sua vontade indomável enquanto cidadão, obtendo a sua força monumental enquanto atleta da sua auto-exigência enquanto cidadão exemplar. Seria essa, digo eu, a ideia dos gregos ao promoverem os Jogos da Antiguidade. Assim, a partir dos anos sessenta, ele e a sua mulher não pouparam a sua imagem de "heróis nacionais", e saíram para a linha da frente na Primavera de Praga, enquanto a tirania Soviética invadia aquele país, matando, para esmagar a reforma liberal - leia-se, a Democracia. Zátopek foi expulso da equipa nacional de atletismo, e a sua iconografia foi rasgada da consciência nacional checa. Mas não para sempre.


No final do Verão de 1968, o australiano Ron Clarke regressava do México, onde tinha perdido o ouro olímpico nos 10.000 metros, sufocado pela altitude a que se disputou a prova. Visitou Zátopek, numa Praga também ela agora de novo sufocada pelo Regime Soviético. Ao despedir-se de Emil, percebeu que este lhe introduzira, disfarçado por um abraço, um pacote no seu saco de viagem. Temeroso, não o abriu para não denunciar Zátopek, convencido de que se tratava de algo censurável aos olhos da omnipresente polícia política. E tinha razão: ao chegar ao Ocidente, abriu a embalagem - eram as três medalhas de Emil Zátopek. O checo que corria, acabava de saltar o Muro.


As medalhas, essas, estão hoje no Arquivo Nacional em Praga, na República Checa.

 

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