Opinião
Esta remodelação é uma espécie de "salada-russa"
No seu espaço de opinião habitual na SIC, o comentador Marques Mendes fala sobre o aumento do custo de vida, dos apoios do Governo e da mini-remodelação do Executivo, entre outros temas.
OS EFEITOS DA INFLAÇÃO
1. Aparentemente, há uma ligeira luz ao fundo do túnel: a inflação global no mês de novembro registou uma pequena redução, para 9,9%. Em qualquer circunstância, há que ter muita cautela: esta redução ainda não se nota nas prateleiras dos supermercados, nos empréstimos à habitação e nos próprios sentimentos dos portugueses.
2. Assim:
a) O cabaz alimentar da DECO Proteste, com 63 produtos essenciais: registou esta semana o valor mais alto desde que começou a guerra na Ucrânia (19,4%). E nalguns produtos o que se constata mesmo é uma hiperinflação.
b) No crédito à habitação, o outro efeito da inflação – a subida dos juros e da Euribor – causa efeitos devastadores nas famílias. Segundo a DECO Proteste, o aumento da prestação de um empréstimo de 150 mil euros, com Euribor a 6 meses, é de 39%, entre junho e dezembro de 2022. E, com a Euribor a um ano, o aumento, de dezembro de 2021 a dezembro de 2022 chega mesmo aos 56%.
c) Os próprios hábitos dos portugueses continuam a evidenciar muita prudência perante o flagelo do custo de vida. Vejamos uma sondagem desta semana da Intercampus, relativa ao próximo Natal:
· A maioria dos portugueses (55%) diz que vai cortar nas despesas de Natal.
· Perante o recebimento do subsídio de Natal, a maioria dos inquiridos (46%) diz que vai usar esse apoio prioritariamente para fazer poupanças e para adquirir bens de primeira necessidade. Só 13% o afecta à compra de presentes de Natal.
· A prudência é boa conselheira. Em matéria de crise social, talvez a "procissão ainda não tenha chegado ao adro".
NOVOS APOIOS AO SECTOR SOCIAL
1. Tenho insistentemente realçado a urgência de reforçar os apoios do Estado ao sector social: Misericórdias, IPSS, Cooperativas Solidárias e Mutualidades. Porque são instituições indispensáveis neste tempo de crise social, prestando apoio aos mais carenciados; e porque estão a sofrer um impacto muito forte da subida dos preços, em particular da energia.
2. A boa notícia, desta vez, é que o Governo decidiu reforçar, a título extraordinário, os apoios a estas instituições, em três dimensões:
· Primeiro, um apoio extraordinário para 2022, no valor de 35 milhões de euros, a ser pago já no presente mês de Dezembro;
· Segundo, um outro apoio extraordinário, para 2023, também no montante de 35 milhões de euros e também a ser pago antecipadamente já em dezembro deste ano;
· Terceiro, o Governo decidiu também que as comparticipações regulares que o Estado tem com estas instituições terão em 2023 um aumento de 5% (83,5 milhões de euros), sendo que 4,2% deste aumento será pago antecipadamente já neste mês de dezembro e os restantes 0,8% serão pagos mensalmente em 2023.
3. Como contrapartida destes apoios extraordinários, o Governo exige o cumprimento de duas condições: primeiro, a atualização salarial dos funcionários do sector social em linha com o Acordo de rendimentos recentemente celebrado; segundo, a não "cobrança" aos utentes dos lares do bónus de meia pensão recentemente atribuído.
O ESTADO DA SAÚDE
1. As demissões nos hospitais voltaram a surgir esta semana. Não se pode culpar o Ministro da Saúde: está no cargo há apenas algumas semanas. Mas há que pedir explicações e responsabilidades ao primeiro-ministro: está em funções há 7 anos e o seu governo já devia ter atacado a doença crónica das urgências hospitalares.
2. Mas grave, porém, é o que sucedeu esta semana e que teve pouca visibilidade mediática: o concurso para novos médicos especialistas teve muitas recusas e dezenas de vagas ficaram por preencher. Assim:
· O Governo abriu um concurso com 2057 vagas para várias especialidades. O maior número de vagas de sempre.
· Houve 438 candidatos que recusaram qualquer vaga. E houve 161 vagas que ficaram mesmo por preencher. O maior valor de sempre.
· Ou seja, o Governo quer ter mais médicos especialistas no Estado, mas muitos médicos "fogem" do SNS.
3. Há anos isto era impossível. Mas hoje acontece cada vez mais. Porquê? Porque entrar no SNS deixou de ser atrativo para muitos médicos.
· Primeiro, porque os médicos ganham mal, apesar de trabalharem muito e de terem funções de grande delicadeza. Depois, porque muitas vezes o projeto profissional não é motivador. Finalmente, porque há demasiada burocracia e excesso de trabalho administrativo que é exigido aos médicos e que não corresponde à sua verdadeira função.
· Sem atacar o problema da falta de atratividade das carreiras médicas, a situação na saúde tenderá a agravar-se: o Estado à procura de médicos e os médicos a fugirem do Estado. No final, o utente paga a fatura.
CARGA FISCAL A SUBIR
1. Esta semana a OCDE divulgou um relatório que, apesar de pouco discutido, não pode deixar de nos preocupar: Portugal foi dos países onde a carga fiscal mais aumentou nos últimos 11 anos. Vejamos:
· Em 2010, a nossa carga fiscal (impostos e contribuições sociais) era de 30,4% do PIB. Em 2021 chegou 35,8%. Mais 5,4 pp. Um valor acima da média da OCDE (34,1%).
2. Nada disto é novo. Mas tudo isto é inquietante.
· Uma excessiva carga fiscal penaliza a economia: investe-se menos; cria-se menos riqueza; os salários não crescem como deviam; as empresas perdem competitividade; a classe média fica asfixiada com impostos.
· Claro que há países com cargas fiscais semelhantes à nossa ou até ligeiramente maiores. É o caso dos países nórdicos. Mas aí há uma escolha saudável: os nórdicos, por exemplo, têm elevadas cargas fiscais como contrapartida para terem serviços públicos de excelência. Na Saúde, na Educação na Segurança Social.
· Infelizmente, em Portugal, temos o pior dos dois mundos: uma carga fiscal elevada e serviços públicos cada vez mais degradados.
3. Com tamanha carga fiscal, ainda menos se compreende a decisão da maioria de esquerda que, na AR, recusou alargar ao ensino privado a possibilidade de ter acesso a manuais escolares gratuitos. É preconceito e injustiça a mais. Como diz o diretor do Público, se no ensino público há alunos de classes altas com direito a manuais gratuitos, também no ensino privado há estudantes pobres que bem mereciam ter o mesmo direito.
REMODELAÇÃO DO GOVERNO
1. Esta remodelação é uma espécie de "salada-russa":
a) O primeiro-ministro tinha que escolher um secretário de Estado Adjunto para corrigir a imprudência da escolha de Miguel Alves. Agora, parece que finalmente acertou. Mendonça Mendes é uma boa escolha. Um político discreto, mas competente e eficaz.
b) O ministro da Economia tinha que substituir dois Secretários de Estado que o desautorizaram, a propósito do IRC. Aqui, a novidade não é a remodelação. É ter demorado tantas semanas a fazer. A verdade é que um secretário de Estado que desmente o seu próprio ministro só tem o caminho da demissão.
c) No Ministério das Finanças havia que mudar secretários de Estado. Uma questão mais burocrática que politica.
2. No final, há uma questão de fundo que emerge: a imagem de degradação do Governo. Não é normal, em apenas 8 meses, haver tantos casos, tantas demissões e tantas polémicas dentro do Governo. É muito estranho. Tão estranho que, em entrevista ao Público, o próprio líder parlamentar do PS falou expressamente em degradação do clima político em torno do Governo. Eurico Brilhante Dias tem toda a razão. Há que louvar a sua sinceridade.
· A grande questão, todavia, é que o Governo só pode queixar-se de si próprio. Estes casos não foram provocados pela oposição. Todos foram gerados dentro do Governo.
· Aliás, com maioria absoluta, o poder da oposição para complicar a vida do Governo é muito reduzido. Um Governo de maioria absoluta tem a faca e o queijo na mão!
· Mesmo assim, a tentação de culpar a oposição é grande. E o governo não vai deixar de o fazer. Na prática, é a reedição da tese das forças de bloqueio, do final do cavaquismo. O que não é um sinal de saúde política. É sempre um sinal de um governo acossado e em dificuldade. Do que o Governo precisa mesmo é de liderança e iniciativa.
O ESTADO DA VACINAÇÃO
1. A última fase da vacinação contra a Covid 19 – a quarta dose- começou em setembro e termina no final deste mês. Os últimos dados são relevantes:
· A vacinação já está agendada para 3,5 milhões de utentes;
· Falta agendar para apenas 640 mil utentes (na maioria, utentes entre os 50 e 60 anos);
· Já foram administradas 2,5 milhões de doses de vacina.
2. Em termos de faixas etárias, a situação é relativamente confortável: com mais de 80 anos, já foram vacinados 74% dos utentes; entre os 70 e os 79, a taxa de vacinação está nos 76%; e entre os 60 e os 69, a vacinação chega já aos 57%.
· Há só um dado preocupante: 80 mil idosos, pessoas com mais de 80 anos, não fizeram vacinação de reforço contra a Covid 19 nem na Primavera nem no Outono/Inverno. Estão em risco de doença grave.
3. Entretanto, a China volta a ser notícia pelo descontrole da pandemia, pelos confinamentos e pelos protestos. A grande questão é esta: por que é que o Ocidente já faz vida normal e os Chineses estão fechados em casa? Três razões:
· Primeiro, a China tem piores vacinas que as do Ocidente. Não são vacinas de RNA Mensageiro, as tecnologicamente mais avançadas. Aliás, nunca as vacinas chinesas foram aprovadas nos EUA e UE.
· Depois, a China tem piores taxas de vacinação que o Ocidente. Sobretudo na população de risco. Vacinaram mais os mais jovens e menos os mais idosos.
· Finalmente, há uma desconfiança dos cidadãos em relação aos políticos. O que leva muitos Chineses a fugirem da vacinação. E assim vai por água abaixo a superioridade moral que a China queria ter, em matéria pandémica, relativamente às democracias ocidentais.