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Manuela Arcanjo - Economista 01 de Fevereiro de 2018 às 21:08

ADSE e os prestadores privados

Como o Estado tem uma enorme dificuldade em controlar o que quer que seja, resolve baixar o preço dos atos e passar a exigir aos beneficiários uma autorização prévia da ADSE para a realização de determinados exames.

A ADSE passou em 2016 a instituto público de gestão participada, com um Conselho Geral e de Supervisão (CGS) que integra dezassete membros, nove dos quais representantes dos beneficiários titulares, dos aposentados e dos sindicatos. Admito que aguardava com expetativa este funcionamento tão participado. Nas últimas semanas, a ADSE tem surgido diariamente na comunicação social devido a um conflito com os representantes da rede convencionada, em especial com a Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP), que integra os grandes grupos de hospitais privados. Em causa está a revisão, em baixa, da tabela de preços por ato e a introdução de novas regras. Para o presidente da ADSE está em causa uma poupança de umas dezenas de milhões de euros. Tudo a bem dos beneficiários, certo? Não, errado.

 

Antes de avançar, importa recordar alguns aspetos. Estando nos 50% de agregados familiares que pagam IRS em Portugal, os funcionários públicos contribuem para o financiamento da despesa pública em geral e do SNS; com base na remuneração pagam 3,5% à ADSE - o que se traduz para milhares de pessoas num valor mensal muito superior ao custo de um seguro privado - e sempre que recorrem a um prestador convencionado efetuam um copagamento de acordo com o ato. Mas, pode compensar em função das necessidades em saúde de cada um e por via, até recentemente, de uma cobertura mais ampla. Segundo dados da ADSE, o número total de beneficiários tem vindo a diminuir desde 2007 por via da redução apenas nos titulares no ativo. Porém, a despesa com o setor convencionado aumentou em mais de 114% entre 2007 e 2016, atingindo neste ano os 405 milhões de euros. Como a ADSE não tem aumentado a tabela de preços, resta entender este aumento pela pressão da procura quer por parte dos beneficiários (aumento do número de idosos, por exemplo) quer aquela que é induzida pelos próprios prestadores.

 

Até aos anos 90, quando a ADSE não era informatizada, só com apuramento manual de faturas ou por denúncias se detetavam irregularidades e fraudes. Mas eram já expressivas. Nos últimos dez anos, com a austeridade financeira a atacar todos os anos o orçamento do SNS - que aumentou fortemente os tempos de espera - houve uma deslocação da procura dos beneficiários para os hospitais privados convencionados. O que começou por ser um acesso mais rápido e de qualidade tem-se vindo a tornar na secundarização dos utentes da ADSE em favor dos seguros privados e num aumento expressivo nos tempos de espera. Mas, o que aqui mais importa é a já referida procura induzida: quem entra numa dada consulta pode passar rapidamente para diversas especialidades e para uma panóplia de exames complementares. Ora, nem todos os utentes têm coragem e/ou informação suficiente para recusarem esses aconselhamentos. Não é fraude, claro, mas apenas o uso dos utentes para aumentar a faturação paga pela ADSE, isto é, pelas contribuições dos beneficiários. Este efeito já é conhecido há alguns anos. Mas como o Estado tem uma enorme dificuldade em controlar o que quer que seja, resolve baixar o preço dos atos e passar a exigir aos beneficiários uma autorização prévia da ADSE para a realização de determinados exames. Não é preciso ser um génio para se antecipar o que vai acontecer: maior tempo de espera e mais médicos (dos hospitais privados) a saírem da convenção o que vai exigir ao beneficiário o pagamento integral da consulta.

 

Duas notas finais. Primeiro, o Estado que tem vindo a restringir a capacidade do SNS não se tem importado em pagar a procura induzida. Segundo, se a revisão da tabela e algumas das novas regras vão piorar o acesso nos grandes prestadores, como foram aprovados por unanimidade pelo CGS?

 

Professora universitária (ISEG) e investigadora. Economista.

 

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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