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08 de Julho de 2015 às 20:00

Instinto de sobrevivência

Quando há 30 anos aterrei em Bruxelas para iniciar um longo período de trabalho nas instituições europeias foi um mundo bastante diferente aquele que encontrei. Muito diferente, desde logo, do Portugal pobre e intervencionado do início da década de 1980.

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Mas também significativamente diferente da visão idealista e até romântico-revolucionária de alguns vultos do movimento federalista europeu (Hendrik Brugmans, Alexandre Marc, Altiero Spinelli, Denis de Rougemont) que tive o privilégio de ouvir enquanto aluno.

 

A "velha" Comunidade Europeia havia criado prosperidade e conseguido décadas de paz num continente em que a regra foi quase sempre a guerra. Tinha iniciado já o processo de alargamento das suas fronteiras a sul e preparava-se para se estender definitivamente a norte e a leste. Ouvi falar do "fim do mundo" e de crises insanáveis vezes sem conta. Convivi com os que queriam mais integração e mais federalismo, com os defensores do regresso às origens, com os que gostam do meio da ponte, com os totalitários, os saudosistas e os militantemente pessimistas, otimistas ou indiferentes.

 

Já regressado a Portugal, voltei a Bruxelas muitas vezes. Na primeira década deste século participei em largas dezenas de reuniões, formais e informais, de alto e de baixo nível. Assisti a discussões intermináveis, trocas de insultos, desaforos, visões inconciliáveis e frequentes ameaças de cataclismos iminentes. Lembrei-me frequentemente de Galileu e do seu "E pur si muove", de cada vez que o fim e o abismo eram anunciados. Mas também presenciei manifestações de júbilo, proclamações de vitória e desenhos de soluções - temporariamente... - "à prova de bala". Nessas alturas vinha-me à lembrança uma frase não tão famosa que saiu da pena de Nelson Rodrigues: "Daqui a duzentos anos, os historiadores vão chamar este final de século de 'a mais cínica das épocas'. O cinismo escorre por toda parte, como a água das paredes infiltradas".

 

Os últimos cinco meses (ou serão os últimos cinco anos?) não foram assim tão diferentes. Podemos - e devemos - ser críticos quanto à forma como o atual governo grego se apresentou em Bruxelas para discutir medidas que não quer. Podemos - e devemos - questionar a boa-fé negocial de quem discorda em absoluto das regras do clube a que pertence e quer subvertê-las. Mas não podemos ficar surpreendidos. A Europa gosta do conforto do meio da ponte. Quer continuar a ser a casa de todos, dando uma chave a cada um. Quer albergar a todos sob o seu chapéu, ainda que saiba que ele é demasiado estreito para que todos se possam abrigar. Gosta de tentar conciliar o que só por milagre é conciliável. Confia em excesso no voluntarismo e na força da persuasão. Tem uma fé quase inabalável de que as coisas acabarão por se resolver (ou, pelo menos, por dar a aparência de que estão a caminho de se resolver).

 

Este é o momento de todas as dúvidas, sobretudo porque a Grécia já só pode perder. O que pode variar é "apenas" a dimensão da sua perda e o impacto que tal poderá ter na UE e nos demais Estados-membros. Não há pior cenário numa mesa de negociações do que a derrota para ambas as partes. Mas não subestimemos o instinto de sobrevivência da UE, seja qual for o resultado da Cimeira de domingo. Com maior ou menor dificuldade, a Europa já nos habituou a conseguir encontrar um caminho, ganhar tempo, evitar o precipício e afastar demónios. Desta vez não será diferente.

 

Advogado

 

Este artigo está em conformidade como o novo Acordo Ortográfico

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