Opinião
Infernos e paraísos
Costuma dizer-se que Stanford tem mais bicicletas do que estudantes e trabalhadores. Ou que há mais carneiros na Nova Zelândia do que pessoas.
No estado norte-americano de Delaware - que muitos em Portugal parecem só ter descoberto agora - o número de empresas (mais de um milhão) é superior ao da população total, que excede em pouco os 900.000 habitantes.
O pequeno estado de Delaware, encostado a Nova Jérsia, Pensilvânia e Maryland, fica a 200 quilómetros de Nova Iorque e a cerca de 50 de Filadélfia, berço da declaração de independência dos EUA, e foi o primeiro estado a ratificar a Constituição americana em Dezembro de 1787, o que ainda hoje lhe permite ser conhecido como "The First State".
Apesar da sua reduzida dimensão, Delaware acolhe cerca de 60% das empresas constituídas em território americano e quase dois terços das empresas que integram a lista da Fortune 500. Pequenos, médios, grandes e gigantes, muitos dos nomes e marcas que conhecemos "vivem" lá. Até a loja da Apple que mais iPhone vende está no Christiana Mall, a "Meca dos compradores" situada junto à I-95, a principal autoestrada que liga os estados da "East Coast". Diz-se até que chegam a ser quase 300.000 as empresas, como a Coca-Cola ou a General Electric, que partilham o mesmo endereço no estado de Delaware...
A verdade é que quase 25% do orçamento de Delaware resulta das taxas de registo das empresas lá constituídas e que outros 40% provêm dos rendimentos proporcionados pela sua atividade. Para uns, a explicação não podia ser mais simples: trata-se de umas Ilhas Caimão, sem palmeiras; para outros, a justificação está no compromisso do Estado e dos seus órgãos de governo em promover um direito societário moderno e claro e um sistema de justiça que funciona bem e de forma eficiente.
No estado de Delaware os tribunais não se multiplicam. Para as empresas e para quem cria emprego, há apenas um tribunal (Court of Chancery) e uma justiça rápida e eficiente em que os processos não se arrastam durante anos. Regras simples e claras e um corpo de juízes especializados em direito societário permitem resolver em poucos dias o que em muitos outros lugares do mundo e dos EUA levam anos.
Muitos têm feito notar - a começar pelo New York Times e pelo The Economist - que, à sombra do "regime especial" adotado pelo estado de Delaware, é demasiado fácil fugir ao pagamento de impostos, constituir empresas-fantasma e encobrir atividades criminosas. Em 2012, o New York Times estimava em 9,5 mil milhões de dólares o montante subtraído aos outros estados norte-americanos em resultado do chamado "Delaware loophole" que permite evitar a tributação dos "ativos intangíveis", designadamente das "royalties". Alguns até chegaram a afirmar que a única coisa que o Delaware produziu nos últimos anos teria sido o vice-presidente Joe Biden que acompanhou o Presidente Obama nos seus dois mandatos...
A verdade estará, como muitas vezes, a meio caminho entre aquilo que argumentam os defensores da especificidade do Delaware e os mais acérrimos detratores da sua "política amiga das empresas". Estudos recentes tendem a apontar no sentido de que a "poupança fiscal" resultante do regime mais favorável praticado no Delaware se terá reduzido entre 30% a 40%, em particular na sequência das medidas adotadas por outros estados norte-americanos com vista a impedir a possibilidade de transferência de responsabilidades para as subsidiárias constituídas naquele estado.
Em todo o caso, enquanto a alternativa for o "inferno" fiscal que bem conhecemos haverá sempre quem procure o "paraíso"...
Advogado
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