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Onde está o interesse público?

Mais do que nunca, face à progressiva tendência para a dissolução dos valores em prol das coisas concretas e dos benefícios individuais, importa reflectir sobre o lugar do interesse público em situações de conflito.

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Como identificar o lugar geométrico entre direitos adquiridos por grupos e desígnios gerais? Como decidir quando todas as escolhas são potencialmente injustas? O dito interesse público deverá sempre levar a melhor? Em abstracto, sim. Só que não é possível defini-lo com clareza sem se entrar em discussões ideológicas e, mesmo assim, a capacidade de mobilização e persuasão dos agentes particulares revela-se frequentemente impossível de contrariar com argumentos racionais. Olhemos para três situações de conflito de interesses.

 

A redução para 35 horas dos horários da função pública é um caso típico de contradições somente resolúveis pela via política pura e dura. Trata-se de repor uma regalia pré-troika e de cumprir uma promessa eleitoral, contentando uma boa fatia da população - os funcionários públicos - em detrimento de uma ainda maior - os trabalhadores do sector privado, que mantêm o seu regime de 40 horas e pagam o grosso dos salários dos servidores do Estado. Para os sindicatos, um grupo de interesses próprios dentro da função pública, a vitória não podia ser diferida, tinha de ser imediata, a tal ponto que chegaram a convocar (para dia 29) a que seria a greve mais absurda do pós-PREC, dela desistindo porque terão obtido garantias do Governo de que as contas sobre os inevitáveis aumentos de custos estariam concluídas antes de Julho. Onde fica o interesse público?

 

Num outro teatro onde as forças sindicais detêm forte presença, o dos transportes, a malha é igualmente complexa e envolve a propriedade e exploração das empresas de transportes urbanos. São dos últimos bastiões do sector público empresarial e somam uma volumosa dívida a décadas de exploração deficitária e serviço geralmente deficiente. O Governo anterior decidiu privatizá-las, concessionando-lhes a exploração dos metros e dos autocarros de Lisboa e Porto, sem atender aos interesses de dois poderes - o autárquico e o sindical. O novo Governo reverteu o processo, contentando ambos. As Câmaras de Lisboa e Porto viram atendida a sua legítima vontade de assegurar a macrogestão dos transportes públicos das suas cidades e os sindicatos, com o seu impressionante registo de 275 greves ou pré-avisos de greve por ano, podem hastear alto a sua bandeira. Veremos onde ficará o interesse público, que é o de ser bem servido de transportes.

 

(Parece que) há gás natural na costa algarvia. Enquanto as concessionárias preparam os últimos furos de confirmação, autarcas e ambientalistas exigem que os contratos sejam rasgados. Receiam danos ambientais e na actividade turística, embora só a concessão onshore pareça ter algum risco se vier a ser utilizada a técnica de fracking. Nós, que sonhamos há décadas com petróleo no Beato, preparamo-nos para desbaratar gás natural a 40 quilómetros da costa, mas talvez ainda se vá a tempo de prever umas verbas para as autarquias. É o interesse público a funcionar.

 

Figura do mês: Manuel Salgado

 

É a cara do projecto da Nova Segunda Circular. Arquitecto e urbanista, o vereador Manuel Salgado tem um interessante conceito de cidade. Vê mais boulevards, praças e alamedas do que rotundas e vias rápidas; vê Lisboa mais amiga dos cidadãos, do comércio local, dos peões, do ambiente. O automóvel é uma inevitabilidade e um problema. A revolução do trânsito no Marquês de Pombal ou o programa de intervenção nas Avenidas Novas, por exemplo, inserem-se nessa visão. A Segunda Circular é o próximo desafio, um bico de obra.

 

Mentiria se dissesse que as obras na Segunda Circular, se forem por diante, não me assustam. Antecipo novos congestionamentos, sobrecarga de artérias interiores da cidade e outros efeitos desesperantes. Mas o resultado pretendido justifica o sacrifício. Se tudo tiver sido bem pensado, em especial o escoamento alternativo de trânsito durante e após os trabalhos, e for bem executado, a ousadia terá recompensa. Nem que se tenha de trocar o lódão-bastardo pelo endro.

 

Número do mês: 1%

 

Há dez dias, a organização não governamental Oxfam publicou os resultados da sua recente investigação sobre níveis de riqueza, parcialmente sustentada pelo relatório Global Wealth Databook (Credit Suisse, 2015) e outras fontes. O trabalho traz-nos a confirmação ácida do que os índices de Gini há muito vinham indiciando - 1% da população mundial detém mais riqueza do que os 99% restantes.

 

Se a desproporção é chocante, outras comparações não o são menos - por exemplo, que a riqueza das 62 pessoas mais ricas do planeta aumentou 542 mil milhões USD desde 2010, enquanto a dos 3,6 biliões mais pobres diminuiu 1 bilião USD; ou que metade do aumento da riqueza global desde 2010 foi absorvida pela fatia exclusiva dos 1% mais ricos; ou ainda que o valor dos depósitos em paraísos fiscais suplanta o PIB combinado da Alemanha e Reino Unido. Entre outros indicadores de choque, assinala-se a curiosidade de, entre 200 das maiores empresas mundiais e parceiras estratégicas do Fórum Económico Mundial, nove em cada dez estarem presentes em pelo menos um paraíso fiscal.

 

Economista; Professor do ISEG/ULisboa 

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