Opinião
Oui, Chef!
O mundo tinha reparado em nós. Nas cidades, na História, no clima e na comida. O turismo disparou e daqui levou a imagem de um país a despertar, finalmente orgulhoso do que tem e do que é.
A História subestimou sempre o papel da gastronomia na economia das nações. Foi sempre um adereço. Maior ou menor, dependendo do historiador, mas só um adereço. A verdade, fácil de medir, é que a única conquista da Belle Époque francesa que ainda hoje dá dinheiro aos franceses é a cozinha. A verdade, mais uma vez, é que o elemento mais importante na transformação da imagem de Espanha, nos loucos anos 90, também veio da comida. Portugal perdeu a oportunidade de ter uma história semelhante quando esta pandemia interrompeu uma corrida que estávamos a ganhar. Estávamos a escassos metros da linha de chegada, aliás, quando o mundo inteiro parou e nos obrigou a voltar ao início. Pode ser que se recupere, dizem os optimistas – e eu costumo ser o primeiro deles –, mas vai dar muito trabalho.
Comecemos pela História para perceber que este texto não é um mero enredo ficcional para nos distrairmos das filas de ambulâncias. E não há melhor maneira de começar do que com França.
O berço da gastronomia moderna, como diria quem gosta de clichés, só ganhou esse título graças a um homem em concreto, Auguste Escoffier, que aproveitou o contexto da riqueza e das oportunidades da era de Napoleão III, para mudar o restaurante. O próprio significado de restaurante.
A RTP3 passou esta semana um bom documentário sobre este enorme empreendedor, descrito em vastíssima bibliografia e nas páginas que ele próprio escreveu (infelizmente, nunca traduzidas para português). Escoffier foi um grande chef que, à semelhança do que ouvimos sobre todos os outros grandes chefs, soube criar, reinventar, blá-blá-blá. Mas na verdade fez muito mais do que cozinhar e foi por isso que trouxe tanto dinheiro a França.
Em primeiro lugar, limpou as cozinhas de toda a bandalheira medieval. Exigiu calma e disciplina. Proibiu o álcool, incentivou conversas sobre técnicas e produtos, cultivou a higiene, forçou os empregados a apresentarem-se fardados e asseados. Até esses dias, na segunda metade do século XIX, as cozinhas eram comparadas às carruagens de carvão de uma locomotiva. Os seus funcionários, vis-a-vis, a maquinistas e carvoeiros. Foi aqui que tudo mudou.
“Oui, Chef!” ouvimos hoje, como grito de guerra, nas melhores cozinhas do mundo. Vem deste homem e da sua praxis. Como vieram todas as técnicas que começaram por casar a ciência à gastronomia, aumentando exponencialmente a qualidade e a consistência da comida servida ao público. Nessa altura ainda não se associava essa postura a uma palavra que hoje passou a adjectivo: profissionalismo.
Mais ainda, é deste pai das cozinhas Ritz o mérito de ter trazido a este mundo a estética do empratamento, que nunca mais abandonaria os manuais de cozinha; e o marketing da restauração, neste caso associado à pomposa fleuma francesa (desavergonhadamente snob), que impôs a palavra “chef” em todo o mundo, mas também introduziu práticas tão comuns como a explicação dos menus à mesa.
Por causa dele, enfim, França passou a ser dona e senhora de toda a cozinha sofisticada do planeta. E os resultados começaram a chegar. Durante mais de um século, chefs e aprendizes de cozinheiros aprenderam francês como se fosse uma linguagem de programação. Milhões de pessoas de todo o mundo quiseram visitar o país só para provar in loco o talento dos pratos. E milhares de milhões de produtos alimentares (mais o vinho) passaram a ser exportados para todos os gourmand do planeta. Porque, afinal, só se podia cozinhar bem com o que os franceses usavam. É fácil fazer contas de mercearia à importância económica desta história.
Mais de um século depois, entre 1990 e 95, depois de muitos capítulos pessoais que não cabem neste espaço, o jovem Ferran Adrià pegou num El Bulli requintado - o que até então significava afrancesado -, e transformou-o no restaurante mais famoso do mundo, graças a uma revolução de atitude que ficou conhecida como nova cozinha experimental espanhola. Começava então o fenómeno da gastronomia molecular que em meia dúzia de anos invadia o mundo inteiro (sempre com o selo España associado), cria uma estética própria e torna-se parte estrutural da nova indústria de lifestyle mundial.
A Espanha dos anos 90 era da Expo de Sevilha, dos Jogos Olímpicos de Barcelona e de tudo o que aconteceu à volta destes grandes eventos. Mas era também um país que queria desesperadamente sair da dependência do sol, da “benidormização” da sua costa, do selo “turismo barato”, e da cauda da Europa em todos os indicadores sociais.
A comida foi apenas um dos muitos elementos que permitiram a enorme mudança que aconteceu, mas tal como no caso anterior foi talvez o mais importante para garantir a sustentabilidade dessa mudança. Ou seja, passaram as feiras, os eventos e, no limite, até a moda associada ao país, mas a comida não voltou a sair do topo da cena mundial. Bem pelo contrário, passou a influenciar restaurantes e cozinheiros em todo o mundo, ajudou a vender a imagem de uma Espanha sofisticada e criativa, invadiu o mundo das estrelas Michelin, formou os cozinheiros de topo de todos os outros países (sim, incluindo o nosso).
E mais uma vez, na sequência disso, fez disparar as exportações dos produtos autóctones de maior qualidade, como o presunto, o azeite, os queijos, o vinho etc.
Em 2019, Portugal esteve mais perto do que nunca de conseguir um feito parecido. É certo que os tais metros que faltavam para a linha de chegada traduziam-se ainda em alguns anos pela frente, mas os astros estavam alinhados para o sucesso.
O mundo tinha reparado em nós. Nas cidades, na História, no clima e na comida. O turismo disparou e daqui levou a imagem de um país a despertar, finalmente orgulhoso do que tem e do que é.
As estrelas Michelin apareceram (a um ritmo vergonhoso e preconceituoso, mas isso é outra história), os chefs formaram outros chefs e a nossa nova identidade cultural e gastronómica estava a ser construída. Bastava continuar.
Imaginem agora o que teria acontecido a Auguste Escoffier ou Ferran Adrià se uma pandemia cortasse o seu trabalho, o seu caminho, e logo no momento mais crítico da sua carreira. Quando estavam mais carregados de energia, capital e reputação. Teriam atingido o mesmo sucesso? E se por acaso não, os seus países teriam sido os mesmos?
Sim, Portugal não é França nem Espanha. Nem há Escoffiers e Adriàs entre nós. Mas havia uma revolução em curso que podia ter consequências fenomenais na economia nacional por muitos e bons anos. Oxalá possamos voltar ao caminho certo.
Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico