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Reflexões sobre o "Brexit"

No Reino Unido (RU) haverá em junho um referendo sobre a sua permanência na União Europeia (UE). A economia mundial não precisava de mais este choque, e o tema tem demasiados ângulos interessantes para ser ignorado.

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Esta é mais uma votação em que eu gostaria de ter o direito de participar e em que votaria tranquila e convictamente pela permanência.

 

Comecemos pelo ângulo político. Que é talvez o mais pedagógico.

 

Porque há um referendo agora? Afinal será a segunda votação no RU sobre o assunto, já que houve um resultado positivo num referendo sobre a sua continuação no Mercado Comum em 1975.

 

Em larga medida, o referendo só ocorrerá por causa duma promessa política. O atual primeiro-ministro britânico disse em janeiro de 2013 que convocaria um referendo sobre a manutenção do RU no contexto de uma UE reformada, caso ganhasse as eleições legislativas de 2015. Uma declaração com o objetivo de ganhar tempo e adiar um debate fraturante no seio do Partido Conservador. E facilitar a vitória eleitoral, o que veio a acontecer.

 

O referendo é assim o cumprimento de uma promessa. O que o torna uma consequência de um erro triplo. Primeiro, David Cameron defendia posições quase favoráveis à saída da UE quando era apenas líder do Partido Conservador na oposição. Era uma voz relativamente moderada mas sugerindo sempre algum euroceticismo.

 

Em segundo lugar, precisou de fazer a promessa em 2013 com um duplo objetivo: eleitoral, mas também para poder mudar de posição ele próprio quando passou a ser primeiro-ministro, certamente para acomodar a sua nova perceção da importância da UE para o RU. Finalmente, depois de obter algumas concessões dos seus parceiros europeus, numa rápida cimeira em fevereiro, que aliás poderia provavelmente conseguir sem a ameaça do referendo.

 

Os três momentos são demasiado comuns na política e quase típicos e estilizados do que se diz antes, durante e após se conquistar o poder. Mas como este conjunto específico de momentos pode causar estragos invulgarmente elevados merece uma reflexão pormenorizada. No primeiro momento, o erro é dizer coisas populares na oposição, de que os líderes rapidamente se arrependem quando conquistam o poder. No segundo, o erro é inventar mecanismos complexos para fingir que não se recuou (a promessa de um referendo sobre uma UE reformada caso ganhe as eleições). Note-se a dupla contingência na promessa. E o terceiro erro, talvez o mais grave para os pacatos britânicos, é cumprir uma promessa que não deveria ter sido feita. Era melhor dizer que agora era a favor da manutenção do RU na UE, não precisando do referendo para reforçar a sua posição pessoal, e aceitar que o povo o julgasse por ter mudado de opinião.

 

Claro que se o RU quiser sair da UE o deve poder fazer. E o referendo seria uma boa forma de o decidir. Mas o processo para o convocar foi ínvio, o que inquina o debate. Até em termos regionais. A Escócia sentirá a saída como uma mudança da situação em que ocorreu o seu próprio referendo, e a Irlanda do Norte pode não querer perder os benefícios de viver numa ilha sem fronteiras económicas. O que fará o RU se os resultados forem significativamente diferentes entre as nações do RU?

 

Os conselhos dos líderes dos países amigos do RU são de que o referendo traz muitos riscos e poucos benefícios. No melhor cenário, fica tudo na mesma. E os eurocéticos domésticos não se calarão certamente. No caso de vitória do "Brexit", iniciar-se-á um processo de divórcio com a UE de uma complexidade invulgar. Será o atual primeiro-ministro que fará a gestão dessa separação? Ou entrará também o RU no grupo dos países europeus com instabilidade política?

 

Curiosamente, os argumentos económicos contra a saída do Reino Unido são avassaladores. Falemos primeiro da própria UE. O Reino Unido com a sua cultura de respeito pela diversidade tem sido um dos melhores defensores da liberdade económica dos cidadãos europeus, pugnando sempre por soluções que mantenham flexibilidade de opção dos povos e países, e rejeitando as regras uniformizadoras nos campos em que são desnecessárias ou criam custos excessivos. Se o Reino Unido sair da UE, quem defenderá, no seu seio, com eficácia, os princípios da liberdade e da competitividade? Haverá certamente uma perda para todos os demais países da UE, quer com os custos da separação quer com um novo equilíbrio com menos comércio e mais obstáculos às transações.

 

Os custos económicos para o RU serão provavelmente maiores, em termos absolutos e relativos. No melhor cenário, as regras da UE (incluindo os custos) aplicar-se-ão também ao RU tal como hoje já acontece com a Noruega ou a Suíça, mas apenas sem a voz do Governo britânico. Acrescem ainda os custos da transição de regime demasiado complexos para serem estimados com qualquer tipo de precisão.

 

Mas o principal risco pode ser mesmo financeiro. A posição do Reino Unido é mais frágil do que parece. O euro é hoje a segunda divisa mundial, e os próprios balanços dos bancos ingleses estão maioritariamente expostos a riscos denominados em euros. Se houver problemas no sistema financeiro inglês, o Banco de Inglaterra precisará da ajuda do BCE para resolver os seus próprios problemas. Terá a mesma dependência de hoje, mas muito menos influência. Aquilo que foi dito sobre os riscos financeiros para a Escócia de sair do Reino Unido aplica-se com igual propriedade, e maior dimensão, à saída do RU da UE.

 

Espero convictamente que os partidários do sim sejam bem-sucedidos junto dos eleitores britânicos. Será certamente interessante de observar.

 

Na minha perspetiva pessoal, porém, as principais lições da decisão de referendar o "Brexit" são mesmo para o comportamento dos líderes políticos. E são simples e lineares. Na oposição, evitar dizer coisas que não se farão quando se for governo. No Governo, assumir as posições de Estado e não fazer golpes de teatro para resolver dificuldades políticas. E se cumprir uma promessa eleitoral for erro, é melhor assumir que não se irá cumprir, evitando construções bizantinas. Dizer apenas que foi um momento de emoção e paixão entusiasmada, e seguir em frente.

 

Professor na Universidade Católica Portuguesa

 

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico 

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