Opinião
A gestão dos demónios
Portugal, goste-se ou não, é visto externamente como um país em crise. No plano financeiro, as nossas contas, que estão longe de ser sãs e vivem num evidente limiar de risco, são ainda observadas com sobrolho carregado pelas instâncias que gerem os "barómetros" de avaliação dos seus compromissos macroeconómicos.
Não vale a pena iludir o facto de que essas entidades externas estão ainda a fazer o luto de uma administração portuguesa que era em absoluto seguidista ao seus ditames e com a qual se sentiam amplamente confortáveis.
Por outro lado, é hoje muito claro que variados meios internacionais olham, com uma perplexidade não isenta de um juízo negativo de valor, para uma solução governativa que inclui, entre os seus apoiantes parlamentares, formações políticas que se afastam do "mainstream" da generalidade dos executivos europeus. Este olhar crítico não se esgota na vertente económico-financeira: embora menos evidente, a questão política de fundo permanece "on the back of the mind" de alguns parceiros mais zelosos.
António Costa deu provas de uma grande habilidade ao conseguir conciliar até agora a observância dos compromissos europeus essenciais no domínio financeiro com a satisfação do caderno reivindicativo dos seus apoiantes e - o que é menos sublinhado - com a necessidade de dar resposta ao cumprimento das determinantes do Tribunal Constitucional. Há quem acuse esta sua agenda de ser ideológica. E depois? A outra "agenda", a aposta austeritária, não o era?
O verdadeiro teste que este Governo tem perante si é o da eficácia concreta das opções que fez. Ir "contra o vento" é sempre uma decisão corajosa, mas a justeza da decisão está menos nessa audácia, ou na satisfação dos prosélitos pelo gesto assumido, e muito mais na habilidade em não se deixar abater por ele.
Mas também é claro que o "clima" externo não é imutável. Entendo, aliás, que Portugal tem hoje uma interessante responsabilidade no plano europeu. É que se a fórmula tentada por António Costa para tornear o "tem de ser assim" tradicional viesse a ter sucesso, o nosso país poderia vir a tornar-se num "case study" que não deixaria de ter impactos significativos no próprio debate europeu em torno da abordagem dos desequilíbrios macroeconómicos.
Uma questão me parece, contudo, estar por resolver.
Deliberadamente ou não - e sou adepto da segunda leitura - este Orçamento e o discurso político que o acompanha surge pouco "business-friendly". Estimular o crescimento pela procura será sempre uma opção com escassa sustentabilidade nos seus efeitos se, em paralelo, não for feito um esforço bem-sucedido para a captação de investimento produtivo, interno e externo, em especial em face do quase residual investimento público que se prevê.
António Costa já demonstrou a sua determinação em observar os compromissos financeiros europeus, não obstante os partidos apoiantes do Governo terem, nesse domínio, uma perspetiva muito diversa, quer em relação às metas dos tratados, quer no tocante às políticas europeias, nomeadamente ao euro.
Ora é decisivo que o primeiro-ministro e o Governo consigam dar provas concretas de que não são reféns da política de hostilidade à iniciativa privada que está na matriz identitária dos seus apoios políticos. Não é só a credibilidade dos socialistas e a sua coerência perante o seu passado que está em causa. Também por aqui passa parte importante da desmontagem dos "demónios" desencadeados em torno da presente solução governativa, na ordem interna e externa. Espero que o Governo tenha disto consciência clara.
Embaixador
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