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19 de Março de 2019 às 20:20

Para amar a democracia, é preciso amar a sua caricatura

É verdade que hoje em dia Westminster parece-se mais com uma caricatura da democracia. Mas a democracia não é nem mais nem menos do que essa caricatura.

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Segundo Mark Rutte, primeiro-ministro holandês, Theresa May parece aquele cavaleiro fanfarrão de um sketch famoso dos Monty Python que, depois de perder os braços e as pernas num duelo, se vira para o adversário ileso e propõe que se considere ter havido um empate. A comparação tem graça. Aliás, Rutte podia ter pegado em qualquer sketch dos Python. Uma pessoa percorre a obra completa e as comparações apropriadas são intermináveis.

 

Haverá melhor forma de definir o governo caótico de May do que compará-lo ao papagaio morto que John Cleese comprou a Michael Palin? A primeira-ministra pode achar que a sua legitimidade está apenas "a descansar", quando talvez ela tenha já mesmo "falecido", "partido", "expirado", "ido ao encontro do Criador", "passado para o outro lado", "deixado de existir". E o mesmo vale para o acordo de saída da União Europeia: é possível que para May ele esteja simplesmente "atordoado", mas se calhar já é mesmo "um ex-papagaio", "a descansar em paz", "desprovido de vida", que "fechou a cortina e se juntou ao coro invisível".

 

E isto para falar só dos Monty Python, porque se pensássemos em todo o humor das ilhas - desde "Yes Minister", sobre o cinismo da classe política, a "Royle Family" ou "Little England", sobre a Inglaterra profunda que supostamente terá decidido o referendo - não faríamos outra coisa se não analisar o Brexit com base na tendência britânica para a autoflagelação espirituosa. O que talvez faça algum sentido, porque o Brexit é só mais um capítulo da longa comédia de enganos que é a participação do Reino Unido no "projecto europeu", repleta de paradoxos e embaraços, como numa boa piada.

 

Basta lembrar que a defesa que muitos políticos britânicos faziam da ideia de uma Europa unida, que viam como uma urgência depois da Segunda Guerra Mundial, excluía a integração do próprio Reino Unido. Ou seja, os britânicos achavam que sofriam com a desunião da Europa, mas não queriam fazer parte da solução (algo de que, convém lembrar, os continentais como de Gaulle também não eram necessariamente adeptos).

 

Havia razões antigas e plausíveis para isso - razões históricas, políticas e filosóficas - mas elas não apagam a ambiguidade fundamental da relação euro-britânica, que esteve sempre presente, principalmente depois de Maastricht, quando a velha civilização inglesa, pátria do empirismo e do parlamentarismo moderno, do poder limitado e da ligação directa entre representados e representantes, começou a divergir para sempre da construção racionalista e burocrática da União federal.

 

Apesar de numa perspectiva histórica a cisão parecer inevitável, não é por isso que o potencial cómico terminará. Seja porque as relações continuarão (O Reino Unido não será uma jangada de pedra a afastar-se da Europa) seja porque o processo de separação é ele próprio um amontoado de paradoxos: temos uma decisão por referendo no país paradigma das democracias representativas, uma ruptura política dirigida pelo governo de um partido conservador, ideologicamente avesso a rupturas, e uma oposição trabalhista que parece não querer a separação, mas cujo eleitorado votou a favor dela, e cujo programa político é basicamente contraditório com a pertença à União.  

 

Quando vemos os debates no parlamento britânico, admiramos ou admiramo-nos com a extravagância daquelas discussões, que parecem ao mesmo tempo vitais e bizantinas, intermináveis e presas no mesmo lugar. Acontece que elas são o resultado da extraordinária complexidade dos interesses que ali estão representados.

 

É verdade que hoje em dia Westminster parece-se mais com uma caricatura da democracia. Mas a democracia não é nem mais nem menos do que essa caricatura. É um exercício lento, abrasivo e intrincado de configuração de interesses opostos, com gritaria, hesitações e uma criatividade inesgotável para alíneas e emendas. Se não gostarmos da caricatura, não gostamos da democracia.

 

E este é o maior perigo de tudo isto, numa circunstância histórica em que cresce a preferência por líderes resolutos e consoladores, e quando sabemos que foi exactamente essa crítica ao "caos" da democracia que abriu caminho aos autoritarismos do Século XX. Disso não me consigo rir.

 

Advogado

 

Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico

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