Opinião
Os tribalistas
Numa democracia comunitária, todos os interesses legítimos serão tendencialmente reconhecidos. Numa democracia identitária, todos os interesses legítimos estão em risco de silenciamento.
Mark Lilla, professor da Universidade de Columbia, é um comentador político "liberal" (no sentido americano de "esquerdista") que acaba de editar o livro "The Once And Future Liberal: After Identity Politics". Enquanto a obra não me chega, li (e recomendo) o seu artigo que instigou o livro, publicado no New York Times na sequência da eleição de Donald Trump ("The End of Identity Liberalism", 18.11.2016), e a entrevista que deu na semana passada à revista The American Conservative ("Mark Lilla Vs. Identity Politics", 16.08.2017).
Lilla fala-nos do estado da democracia representativa americana - que, em boa medida, é o da generalidade das democracias ocidentais -, e de como ela se foi transformando numa terra devastada por ressentimentos inconciliáveis.
Lilla sente-se na obrigação de "policiar" os exageros do seu próprio lado (e pede à direita que faça o mesmo), daí que a sua Némesis seja aquilo a que chama "liberalismo identitário": a política como mera afirmação de direitos de determinados grupos, bem definidos e homogéneos.
É certo que esse movimento foi muito importante, por exemplo, na emancipação das mulheres e das minorias sexuais e raciais. Mas Mark Lilla interessa-se por mostrar também os limites e perigos da agenda puramente identitária.
O que o preocupa é o facto de o movimento progressista moderno ter substituído a ideia de "comunidade" pela de "diferença". Sem a "comunidade", enquanto conceito político nuclear, a política progressista não faz sentido. Isto é, a "comunidade" (o "nós democrático universal") é que é a "identidade" política fundamental, aquela que deve prevalecer e enquadrar todas as outras. Um cidadão cuja relevância política se esgota na sua própria circunstância não é bem um cidadão.
Por culpa destes novos progressistas (e não só), a democracia representativa transformou-se numa democracia tribalista: deixou de ser um processo de persuasão e conversação, de compromisso e síntese entre ideias opostas sobre a mesma identidade comunitária (por muito abrasivo e frustrante que esse processo possa ser), para degenerar num combate fatal entre identidades distintas (a cor da pele, a orientação sexual, a origem geográfica, a filiação ideológica, a fidelidade partidária).
Numa democracia comunitária, todos os interesses legítimos serão tendencialmente reconhecidos. Numa democracia identitária, todos os interesses legítimos estão em risco de silenciamento.
Os progressistas clássicos, que apelavam a ideais colectivos agregadores - a cidadania, a solidariedade, a coesão social, o Estado-providência -, foram ultrapassados pelos progressistas identitários. Estes ajudaram a transformar a democracia num jogo largamente proclamatório e estéril, uma gritaria entre grupos e indivíduos fechados sobre si mesmos, atomizados no seu desinteresse pela persuasão de maiorias, na sua indiferença aos temas políticos que dizem respeito aos outros (que não conhecem nem reconhecem), e que preferem expressar uma razão de queixa a demonstrar uma razão para a mais pequena mudança.
As trincheiras que se cavaram nos países ocidentais, tão fundas quanto artificiais, estão a destruir os sentimentos comunitários de que depende qualquer democracia. A culpa não é só da esquerda, obviamente, mas do meu lado falarei noutra ocasião.
Advogado