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29 de Novembro de 2016 às 20:35

O recuo da liberdade

Os últimos dois anos mostram que a liberdade pode deixar de ser o valor central das nossas ordens políticas. Pela primeira vez na minha geração aparecem forças com relevo que a vêem como um princípio secundário ou acessório.

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Uma das recordações favoritas que guardo do meu primeiro ano na faculdade em Coimbra é a do Professor Canotilho a recomendar livros nas aulas de Direito Constitucional. Tenho-me lembrado de uma aula em particular: por entre os habituais tomos obscuros sobre a Constituição Helvética, escritos em alemão, foi sugerido àqueles petizes de dezoito anos que, para conhecerem os principais debates intelectuais do seu tempo, lessem dois livros: "Uma Teoria da Justiça", a obra com que em 1971 John Rawls explicou como chegar ao objectivo da justiça social partindo dos princípios, prioritários, da liberdade individual; e "O Fim da História e o Último Homem", no qual em 1992 Francis Fukuyama argumentou que as formas de governo baseadas na democracia liberal são o ponto de chegada da evolução ideológica do ser humano.

 

Estávamos em 1998. O Ocidente vivia numa paz e prosperidade inéditas, enlevado por Estados democráticos de bem-estar social, respeitadores das liberdades e financiados pelos frutos económicos dessa liberdade.

 

Desde o pós-Guerra que a liberdade é o valor político central, em torno e dependência de cujas manifestações (individuais e políticas) todos os demais valores têm de ser doseados. Quando vejo a aspereza com que os debates políticos são travados hoje em dia nunca deixo de achar curioso que tamanha excitação seja possível num tempo de tão pequena amplitude ideológica. No grande esquema histórico das coisas, não há uma diferença extraordinária entre um governo "de direita", que defenda a liberdade com algum recuo do Estado, e um governo "de esquerda", que ache que a liberdade precisa de um pouco mais de responsabilidade do Estado. É deste contexto ocidental - liberal e moderado - que aquelas obras de Rawls e Fukuyama são um emblema.

 

Infelizmente, os últimos dois anos mostram que a liberdade pode deixar de ser o valor central das nossas ordens políticas. Pela primeira vez na minha geração aparecem forças com relevo que a vêem como um princípio secundário ou acessório, um luxo de tempos abastados que deve ceder perante a segurança, a protecção económica, a luta de classes ou o nacionalismo. Vemos esta tendência no avanço dos populistas europeus da esquerda revolucionária, como Tsipras e Iglesias. Vemo-la no crescimento de Le Pen e na vitória de Trump. Vimo-la no Brexit, que foi mais o sucesso do proteccionismo e da xenofobia do que obra de bons argumentos cosmopolitas contra a esclerose da União Europeia.

 

No fim-de-semana, vimos a fragilidade da liberdade nas reacções à morte de Fidel Castro. Não só nos elogios previsíveis do PCP e do Bloco, mas também no PS, essa cidadela da esquerda democrática, que apresentou na AR um voto de pesar que é um branqueamento abjecto da ditadura castrista. Aliás, vimo-la também em boa parte dos media, que não conseguiu mais do que descrever Fidel com recurso a factos anódinos e eufemismos ligeiros: um "ícone", um "revolucionário", um "líder histórico", uma "figura controversa".

 

A melhor resposta a este tipo de cobardia deu-a o jornalista britânico Tim Stanley, no Twitter: "Os Sex Pistols foram controversos. Nabokov foi controverso. A minissaia foi controversa. Castro foi um ditador." É desta clareza que precisamos, se acreditarmos que, com todos os erros e insuficiências, é da nossa ordem liberal que depende o bem-estar do futuro. O tempo não está para meias-palavras nem para argumentações desculpantes, que circum-navegam as evidências. À direita ou à esquerda, um inimigo da liberdade é um inimigo da liberdade.

 

Advogado

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