Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
27 de Abril de 2016 às 00:01

Não me dêem pretextos

É extraordinário que o Governo recuse submeter a votos na Assembleia da República o seu Programa de Estabilidade. Este é um Governo firmado na ideia - que prezo bastante - de que o Parlamento deve ser o centro institucional das democracias.

  • 1
  • ...

Assenta, até, numa versão exagerada e duvidosa dessa ideia - a de que o Parlamento é tão soberano que pode fazer as interpretações que bem entender dos resultados eleitorais, e que toda a maioria de deputados tem uma legitimidade perfeita para gerar um governo, igual a qualquer outra. Nesta lua-de-mel parlamentarista em que Portugal vive, é uma tremenda incúria democrática que o Executivo - logo este Executivo - se ache auto-suficiente para comprometer externamente o país com um conjunto de objectivos e medidas estruturantes, cujo planeamento, concretização e efeitos vão bem para lá da validade do seu mandato, sem antes se dirigir à Assembleia. O último programa de estabilidade foi votado pelos deputados, por iniciativa do anterior Governo, que nem assim evitou ser acusado pelos partidos da então oposição de ter previamente procurado a bênção de Bruxelas. Por que razão esses partidos perderam agora os escrúpulos que antes demonstraram?

 

Além de António Costa e Mário Centeno, nenhum ministro determina tanto a orientação estratégica deste Governo quanto Catarina Martins e Jerónimo de Sousa. Em tudo o que é nuclear, as decisões do Governo são tomadas no âmbito das "posições conjuntas" assinadas na Assembleia, não nas reuniões do Conselho de Ministros - transformado numa repartição de funcionários sem relevância, dedicada à mera intendência do quotidiano. Neste cenário, o mínimo que se exige aos partidos da esquerda é que assumam no hemiciclo, numa votação pública e formal, todas as opções económicas, orçamentais e fiscais do Governo que apoiam. Não foi precisamente para determinar e limitar as orientações financeiras dos governos (para autorizar a realização de despesas e a cobrança de impostos) que nasceram os Parlamentos modernos?

 

Uma das piores consequências da formação do Governo das esquerdas é ter criado um quadro mental em que a política é analisada segundo um prisma essencialmente imediatista e táctico. Há como que uma sustação colectiva da respiração, um sobressalto permanente sobre o poder no arame. Os analistas estão tão viciados na esperteza de António Costa, tão perplexos com a sua habilidade, que praticamente só discutem os despojos do dia: é hoje que cai o Governo? É amanhã? É para o ano? A esta luz, talvez pareça uma bizantinice exigir a aprovação do Programa de Estabilidade no Parlamento. Não o é, de todo. Trata-se de lembrar que, não sendo este um Governo ilegítimo, existe uma questão de justificação democrática pendente, que em nome da salubridade do regime precisa de vigilância constante.

 

A realidade, o mais implacável e cínico dos adversários (até para António Costa), já tratou de enviar para a história das ideias políticas o programa alternativo à direita em que a união das esquerdas se legitimou. Continuará a haver mais "austeridade" do que "crescimento". Aliás, conforme noticiava ontem o Negócios, as previsões do Programa de Estabilidade decalcam basicamente as do anterior Governo. Mas, até por isso, convém que a união seja mesmo unida. De nada vale celebrar o alargamento do "arco da governação" se a união não funciona quando é a doer. E de nada vale falar da legitimidade deste Governo se ele se limitar a cumprir as metas do anterior, apenas com o apoio de um dos partidos que perderam as eleições. Eu detesto o argumento da ilegitimidade. Mas, por favor, não me dêem pretextos.

 

Advogado

Ver comentários
Mais artigos de Opinião
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio