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22 de Janeiro de 2019 às 20:40

A "unanimidade burra" do "europeísmo"

A percepção de que o Brexit foi um sucesso seria desastroso para a União, pelo efeito de imitação que poderia produzir, especialmente num cenário - que aí está - de estagnação económica e crescimento do sentimento antieuropeu.

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"Toda a unanimidade é burra", consta que Nélson Rodrigues disse um dia, porque "quem pensa com a unanimidade não precisa de pensar". É o que acontece quando se discute a União Europeia. Às vezes parece que qualquer crítica ao projecto, ou simplesmente ao seu funcionamento circunstancial, equivale a renegar Grécia e Roma, o Renascimento, o Iluminismo e a Revolução Industrial.

Todo o europeísmo é consumido pela União. Não há Europa sem ela. A União é o destino feliz da História, o ponto culminante da marcha da civilização, e não se fala mais nisso. Ou o europeísmo é o europeísmo eufórico dos políticos e comissários, ou não há de todo europeísmo.

 

Esta recusa em pensar a União Europeia tem sido especialmente visível na questão das negociações do Brexit. As atenções estão todas dirigidas para a comédia da situação britânica, mas é um erro achar que do lado de cá do Canal não há nada para ver, como se a União Europeia, na sua impassibilidade, tivesse aceitado o Brexit com resignação e até alguma bonomia democrática.

 

Acontece que a irredutibilidade da União nas negociações não se deve apenas à necessidade de defender os seus princípios fundadores. Essa justificação é verdadeira, mas insuficiente: os princípios da União admitem uma geometria bastante variável nas relações com países terceiros. Às vezes até parece que não estamos a falar de relações político-diplomáticas entre Estados.

 

Aquilo que realmente determina a inflexibilidade da União Europeia nas negociações é o facto de no Brexit também se jogar a sua própria sobrevivência.

 

De todos o Estados-membros, o Reino Unido é aquele cuja saída mais provavelmente poderá ser um caso de sucesso, no médio ou longo prazo. Por causa das suas relações especiais com outras potências, por causa da força da sua economia e cultura, da dependência de que grande parte da economia mundial tem dos seus serviços, e por causa da sua mentalidade liberal, cosmopolita e pragmática, que não atrapalhará os britânicos com pruridos ideológicos excessivos quando na hora de zarpar for necessário manter uma sociedade aberta e dinâmica.

 

A percepção de que o Brexit foi um sucesso seria desastroso para a União, pelo efeito de imitação que poderia produzir, especialmente num cenário - que aí está - de estagnação económica e crescimento do sentimento antieuropeu.

 

O maior problema actual da União talvez nem seja a saída formal do Reino Unido, mas o facto de haver tantos países que estão a sair progressivamente sem necessidade do famoso artigo 50º. Países como a Itália, a Hungria, a Roménia ou a Polónia têm hoje governos que se estão nas tintas para a democracia, o Estado de Direito e os Direitos Humanos, tal como a União os concebe. E noutros, como a França e a Alemanha, há forças que poderão no futuro comprometer a "construção europeia".

 

Perante esta ameaça de apodrecimento, a União percebe que o Brexit não pode correr bem. O melhor, de preferência, é que pura e simplesmente nem sequer aconteça.

 

É por isso que a sua estratégia foi sempre a de colocar os britânicos perante um dilema sem solução - o de se verem obrigados a escolher entre duas opções impossíveis: uma saída sem acordo, desordenada e de efeitos imprevisíveis, e um acordo inaceitável, cuja promessa é a de fazer do Reino Unido uma colónia de Bruxelas.

 

É um impasse em que a União pensa que tem tudo a ganhar. Se os britânicos escolherem a saída sem negociação, os efeitos imediatos serão a vacina ideal para curar os eventuais imitadores. Se escolherem o acordo em cima da mesa, a União poderá dizer que o Brexit só correu bem porque tudo ficou basicamente na mesma.

 

Se decidirem não optar, aí só haverá uma terceira opção: um outro referendo. É esta a solução que Bruxelas deseja, e é ela que quis forçar com a insistência num acordo inaceitável.

 

Talvez o consiga, e talvez desta vez o referendo dê o resultado certo. Mas essa solução não revelaria só a futilidade de querer sair da União. Ela seria também uma lição sobre a fragilidade elementar da União Europeia, à qual, com renovadas ilusões de progresso, segurança e grandeza, continuaríamos a pertencer.

 

Advogado

 

Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico

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