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06 de Novembro de 2018 às 19:43

A democracia não pode ser a ditadura das escolhas impossíveis 

Convém lembrar que Bolsonaro não chegou ao poder através de um golpe militar. Venceu eleições. Isto recomendaria que não se baixasse a guarda da inteligência. Infelizmente, da parte da esquerda portuguesa temos tido mais política do que análise política.

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Para grande parte da esquerda portuguesa, a "análise" das eleições brasileiras foi um exercício de história contrafactual subordinado ao seguinte dilema: "E tu, se fosses brasileiro, em quem votarias?" A pergunta, que para a maioria das pessoas pressuporia uma escolha macabra entre dois males, serviu um único propósito: tentar encostar os partidos da direita portuguesa a Bolsonaro e pintá-los como párias no regime democrático.

 

A questão foi colocada numa entrevista a Assunção Cristas, que respondeu como Fernando Henrique Cardoso e Ciro Gomes, dois brasileiros insuspeitíssimos: jamais votaria em Bolsonaro, mas também não iria a correr para os braços do PT.

 

Por causa desta neutralidade, caiu-lhe a tropa de elite em cima. Veio Francisco Louçã, com o seu currículo de defensor de ideologias totalitárias, ele que ainda hoje anda por aí a esbanjar complacência perante os desastres socialistas do mundo. Veio a deputada Isabel Moreira, que na actual legislatura aprovou um voto de pesar pela morte de Fidel Castro, às mãos do qual não consta que a oposição, as minorias sexuais e o sufrágio universal tenham sido tratados com bonomia e exaltação. Veio Daniel Oliveira, que costumamos ler e escutar em longas análises das atribulações venezuelanas ou cubanas, criticando os regimes, mas alertando para os perigos das oposições, e que parece não estar disponível para conceder aos outros o direito de lembrar a complexidade das coisas.

 

Se o problema desta tentativa de deslegitimar a direita fosse só o excesso de presunção da esquerda, estaríamos bem. O que ela revela, contudo, é uma perigosa atitude de desistência intelectual. Neste processo, a esquerda portuguesa revelou-se mais interessada em conhecer o voto hipotético de quem não participaria na eleição do que em perceber as razões do voto de quem efectivamente participou.

 

Convém lembrar que Bolsonaro não chegou ao poder através de um golpe militar. Venceu eleições. Isto recomendaria que não se baixasse a guarda da inteligência. Infelizmente, da parte da esquerda portuguesa temos tido mais política do que análise política. Porque a única coisa que aquela deseja, a propósito do Brasil, é prosseguir o objectivo de sempre: expulsar a direita da cidade democrática.

 

É por isso que o debate foi colocado em termos absolutamente lineares, que não são sérios. Em primeiro lugar, há o pressuposto inaceitável da absolvição do PT. Das "fake news" ao Whatsapp, do "impeachment" de Dilma às conspirações dos media, tudo tem servido para desviar as culpas de quem esteve no poder na última década e meia. Não vimos esta esquerda amparar a queda de Hillary aos pés de Trump, nem chorar a destruição do PS francês. Porquê? Porque nesses casos restava uma esquerda "boa", de Bernie Sanders e Mélenchon. Aí havia espaço para compreender as razões dos eleitores sem perder a face. Mas agora, no Brasil, a queda foi a da esquerda certa, e os camaradas portugueses ficaram sem outra a que se agarrar.

 

Em segundo lugar, a ideia de que a segunda volta das eleições brasileiras foi um embate "entre o fascismo e a democracia" é de um simplismo sedutor, mas que nos impede de querer ouvir o que o povo brasileiro tem a dizer sobre o ponto de saturação a que chegou. O que os brasileiros disseram é que não sentem grande diferença entre a ordem pistoleira de Bolsonaro e a desordem do PT. Porque a corrupção e o crime violento organizado, no que têm de captura do interesse público pelas cliques do costume, também são uma subversão da soberania popular e da vontade da maioria.

 

Podemos achar que os brasileiros estão errados. Podemos admitir que esta eleição era um daqueles casos em que, entre a causa e a consequência, um democrata deveria querer a continuação da causa em vez da antecipação da consequência. O que não podemos fazer é recuar tanto na defesa da democracia que o nosso único argumento passe a ser o de que é sempre possível uma escolha entre dois males. Como argumento, é verdadeiro. Como consolo, é fraco. A defesa da democracia, hoje, começa na rebelião contra a ditadura das escolhas impossíveis.   

 

Advogado

 

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico
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